sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Testemunha

Quando Margarida decidia que tinha mesmo de fazer alguma coisa, essa decisão nunca explodia. Fermentava devagarinho, como bolo no forno, até um dia os amigos ouvirem dizê-la: "Já venho, tenho uma coisa para fazer".

Quem a conhece já está habituado à distância entre a menção a um projecto ou decisão e a concretização efectiva dessa intenção, e não confunde maturação com adiamento. Porque não é que a Margarida adie.



Simplesmente aguarda pelo seu momento, como esta noite.

Margarida pensou, numa tarde perdida, que seria interessante pescar sável. Nunca o tinha feito, sabia que nas redondezas de Lisboa havia essa tradição piscatória, e pareceu-lhe entusiasmante passar uma noite a armadilhar, com as velhas galochas enterradas até ao joelho em lama e o oleado que a mãe lhe deu pelos 20 anos a acumular a condensação da humidade.

Àparte a partilha da ideia com os amigos que, desinteressados de aventuras, sorviam imperiais, não se mexeu... até se levantar hoje do sofá, agarrar no equipamento e conduzir à luz do crepúsculo até Vila Franca de Xira, passando para a estrada do Porto Alto. Estacionou na berma, equipou-se, respirou fundo e caminhou para a margem Norte do rio, acima da Ponte Marechal Carmona.

Quando terminou de lançar as armadilhas no Tejo, e reflectindo sobre a profundidade do caudal do rio, pensou: "De barco é que isto se fazia mesmo bem. Será que há para aí algum coco desocupado que eu pudesse usar?"
Riu-se, recordando os tempos de infância em São Martinho do Porto, quando pedia "emprestado" os barcos dos pescadores e ia para o largo da costa apanhar o robalo mais fugidio. E não pôde deixar de se lembrar das palmadas que levou da mãe à luz da delação dos lesados... Desde essa dolorosa punição (que meteu inclusivamente a entrega do peixinho pescado aos prejudicados) pescou sempre em rocha... mas esta noite iria variar.

Levantou-se, esticando a cabeça, e tentou vislumbrar um relance ou um brilho de algum barquito. E viu mesmo um! Estava a escassos metros acima, entre os arbustos que venceram os antigos campos de trigo. Caminhou até lá calmamente, e chegando ao pequeno barco (sem motor e com dois remos cobertos com um toldo escuro) pensou: "É isto mesmo!"

Margarida pousou a bagagem no chão e ouviu um grito aterrador que o vento trouxe do campo selvagem. Esta não seria uma simples noite de pesca, e uma bota inusitadamente enterrada na lama parecia indicar a Margarida a direcção da sua arrepiante curiosidade.