terça-feira, 28 de abril de 2009

Cardíaco II

A estrada do Sobralinho para Vila Franca parecia afunilar, encolhendo-se à passagem acelerada da massa metálica branca e vermelha que iluminava de azul tudo em volta.
A ambulância seguia rápida para as urgências, com os tripulantes preocupados.

- Senhor Humberto, quer que contactemos com algum familiar, com alguém? O senhor não tinha telemóvel consigo quando o encontrámos.

O velho inspector, agora aparentemente frágil na prostração em que se encontrava, murmurou que não tinha ninguém a quem pedir ajuda. Tal não era verdade, e Sousa sabia-o. O amigo Saul não o deixaria ficar mal... Mas era melhor não envolver mais ninguém neste lodaçal em que se tornou a sua vida.

Reflectindo sobre as últimas etapas do mistério, algumas coisas tornaram-se muito provavelmente certas:

- O filho, Mário, estava em perigo

- Marques, o ex-camarada de armas que desertou naquela savana angolana, tinha-se tornado uma pessoa muito sombria, eventualmente por questões de stress pós-traumático


- A ligação entre os ex-amigos era tão forte que Marques iria prolongar a vingança pela frustração de não ter podido viver uma vida em família


- Ele próprio estava em piores condições físicas do que imaginaria


- A salvação do filho estava, quase certamente, no endereço que guardava na mão esquerda



Um impacto nas traseiras da ambulância, chapa contra chapa, acordou Humberto Sousa dos seus pensamentos. Os travões fizeram os pneus rugir no alcatrão, enquanto nova pancada estremeceu o interior da ambulância e fez tilintar os equipamentos.

- Emanuel, agarra-te bem que está um doido atrás de nós, pá!- gritou o condutor, enquanto tentava abrandar a marcha da viatura e procurava berma para encostar.
- Ó Ventura, mas consegues ver se é de propósito?
- Não... deixa-me parar aqui à frente da Cimianto para vermos os estragos. O paciente está bem?

O bombeiro Emanuel olhou para mim. Acenei que sim.

- OK, senhor Humberto, vamos parar só um segundo para tirarmos os dados do outro condutor. Não demoramos nada.

Quando Emanuel e Ventura abriram as respectivas portas, saltaram da ambulância para encontrarem uma arma apontada. "Porra...", sussurraram em coro espontâneo de incredulidade.

Quem lhes apontava a arma ordenou que ajudassem o paciente a levantar. De seguida, ordenou que o ajudassem a chegar ao carro de chapa batida que estava parado com o motor a trabalhar e um dos médios a funcionar. Finalmente, uma última ordem para se afastarem da ambulância esmurrada.

Retirada a chave que impediria os bombeiros de perseguirem o futuro veículo em fuga, a arma parou de ameaçar e a mão que a segurava entrou com o restante corpo para o lugar do condutor e engatou a primeira velocidade.

Já aceleravam há uns dois minutos, em direcção à ponte Marechal Carmona, quando falei:

- Vanda Carla, tens a certeza disto?
- Tenho. Vamos à morada que acabaste de me dar, salvamos o meu marido...e só confio em ti para fazeres o que for necessário para que isso aconteça. - respondeu-lhe a nora.

"Uma técnica de análises clínicas de meia-idade, um velho cardíaco e um revólver... Tem de ser suficiente."

sábado, 25 de abril de 2009

Cardíaco I

Sons indistintos. Sirenes, vozes, metais roçando uns nos outros.
Luzes. Sombras. Vultos e movimentos, entrecortando o claro e o escuro.

- Ele está a acordar! - ouve Humberto Sousa enquanto tenta abrir os olhos e toca com o braço em algo frio. A grade de uma maca que o transporta.
Fria.

Os inspectores Pinto e Sequeira fazem sinal para os bombeiros, e estes interrompem o apressado transporte do doente. Debruçam-se sobre o homem que, ainda perdido, retoma gradualmente a consciência e perguntam-lhe: - "Sousa, estavas à procura do quê?"

Esperam que os olhos do doente se abram.

Aguardam mais um pouco.

Indagam com gestos se deveriam insistir.
Os bombeiros e o médico do INEM fazem sinal de discordância.
Os inspectores deixam que se prossiga o transporte para o Hospital Reynaldo dos Santos.

Solavancos. A maca retrai as pernas metálicas quando embate na traseira da ambulância, e mãos hábeis posicionam correctamente a estrutura nos trilhos. Sousa ouve o fechar das portas, sente a viatura acelerar e vê o circular repetido da luz azul que acompanha a sirene.

"O que é que eu estava a fazer quando caí?", pensa. A memória, sente-a como se a tivesse perdido repentinamente.

Tenta agarrar a recordação mais próxima de si. Uma face adolescente, parecida consigo mas igualmente desconhecida, como uma actriz que se conhece mas da qual não recordamos no nome. Mas Sousa recorda-se do nome:
"...Filipa."

O estertor das memórias que numa catarata assomam à lembrança é travado pelo jovem bombeiro, que imediatamente lhe coloca as mãos sobre o peito.

- Senhor Humberto, tenha calma... O senhor teve um ataque cardíaco, e estamos agora a levá-lo para o hospital de Vila Franca. Não se mexa, pois pode sentir-se mal, está bem? Se me estiver a ouvir bem, pisque os olhos.

Sousa piscou. O bombeiro assentiu e deu indicações para o condutor avisar a PSP de que teria de agir quando chegassem.

Sousa percebeu que estava em maus lençóis. A invasão do armazém deve ter sido mal interpretada, pensariam que estaria a decorrer um assalto... e como Mário não tem o telemóvel ligado, as forças da ordem não terão conseguido esclarecer em tempo útil o mal-entendido.

Doía-lhe a mão esquerda. Tentou baixar os olhos, levantando-a ligeiramente. O papel rosa sobre o qual o punho se manteve fechado durante o período de inconsciência guardava o endereço de que precisava, o sítio onde Marques teria o seu filho.

Ninguém mais poderia fazer o que tinha de ser feito... Tinha de se libertar destas amarras rapidamente e perseguir, salvar, resolver.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Investigação III

Com a pressa de encontrar o seu destino, Sousa nem se lembrou de pedir a chave do armazém do filho à nora. Em frente ao portão, o crepúsculo iluminava ténue o labor de subtil arrombamento da fechadura.

O ex-inspector ainda sabia uns truques, e deu-lhe jeito no passado conseguir entrar onde tal não lhe era permitido... Mais uma vez o intento foi conseguido, e lá entrou no espaço amplo de armazenamento de cereais.

Sacas de diversas rações, para uma diversidade de animais, encontravam-se arrumadas de forma ordenada. No chão, os sapatos estalavam ao som de pequenas sementes que sempre escapavam dos recipientes para se espraiarem no piso de cimento cinza.

Humberto Sousa caminhou a passos largos para o canto que se assemelhava a um escritório, abriu a porta e procurou com os olhos por pastas de facturas.
Encontrou-as.

Sentou-se na cadeira de napa gasta, abriu o dossier verde cuja lombada dizia "Clientes/Recibos/2008", e começou a vasculhar. Interessavam-lhe entregas que a empresa tivesse efectuado em endereços entre Vila Franca de Xira e Porto Alto, eventualmente para moradias localizadas nas fronteiras dos terrenos da Companhia das Lezírias.

"Tem de estar aqui a casa do Marques... Tem de estar!", pensava Sousa, ansioso por saber para onde ir. Não sabia o que esse doido poderia ter-se lembrado de fazer ao Mário... E não conseguia parar de pensar nas vidas que estavam ligadas ao filho. Uma mulher, uma filha no início da idade adulta.

Repentinamente, o corpo queixou-se ao seu dono. Uma pontada no peito, quase cruzando todo o tórax até às costas, obrigou Humberto Sousa a levar a mão à camisa e a agarrá-la com força. Doía-lhe imenso, e sentia o chão a fugir... "Não posso parar, não posso parar!..."

Quando os elementos da PSP entraram no armazém, alertados por um vizinho que tinha presenciado o arrombamento e dado o alarme, não se tinham passado mais de dois minutos desde que o enfarte havia empurrado para o estado de inconsciência o velho detective.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Memória do passado III

O calor africano fustigava os militares, no exterior da tenda. Ouviam os gritos no interior, as vozes do coronel e do Tenente Marques cruzando-se em frases indistintas, enquanto tentavam aplacar o calor da pele com cervejas geladas que acabavam de chegar de Luanda.

Saul observava o semblante carregado na face de Humberto Sousa, e percebia que o camarada e amigo estava muito apreensivo com o desenrolar daqueles momentos.

- Sousa... O que achas disto, pá?
-... O que é que hei-de achar, Saúl? O Marques tem razão em querer ir para Portugal, está desorientado, e já mereceu sair deste lamaçal em que estamos metidos até aos joelhos. Mas não o vão deixar ir, e ele não é dos que aceitam um "não" como resposta...
- E tu, avieiro, aceitarias? Tens lá o teu miúdo rijo como um pêro, e a tua mulher é trabalhadora e saudável... Não conseguimos mesmo meter-nos na pele do Marques...
- Pois, Saúl. Mas não posso deixar que ele estrague a vida toda por causa de uma coisa que não pode remediar! A Maria morreu, o bebé não sobreviveu, e não há nada que ele possa fazer para fazer voltar o tempo atrás. A família deles já deve estar a tratar do funeral, e não há maneira de...

Olham para o desorientado conterrâneo, que sai de rompante da tenda com passos decididos. Levantam-se, poisando as cervejas meio bebidas, e dirigem-se para tentar abrandar o seu passo.

- Então, Marques, o que disse o coronel Spínola? Deu-te a licença?
- Não. Mas isso não me interessa.

Marques continuou a andar, na direcção do jipe, até que foi agarrado pelo braço por Sousa. Sacudiu a mão que o segurava, mas não conseguiu libertar-se, pelo que optou por confrontar Sousa.

- O que queres, porra?! Larga-me!
- ... Ouve, tens de ter calma...
- TENHO DE TER CALMA? Já te morreu alguém, cínico dum car...
- Pára, pá! Pára e ouve-me por um segundo! Tu não vais fazer nada que possa mudar o que já aconteceu. Nós estamos aqui, as nossas famílias estão lá, e as coisas acontecem...
- "As nossas famílias"? Nós neste momento não temos famílias, esqueces-te? Tu é que tens família!

Marques soltou-se da mão do amigo, de um salto subiu para o jipe. Ligou a ignição, engatou a mudança, e acelerou pelo capim, dirigindo-se para Norte, enquanto gritava "Agarrem-me se conseguirem, seus cabrões!".

Sousa ficou a ver um tenente do Exército português desertar, com subtracção de veículo militar, e teve aí a certeza que, entre as mais que prováveis perseguições pela Polícia Militar, a barra do Tribunal Militar e o presídio, muito dificilmente as vidas dos dois se sintonizariam novamente.

Havia perdido a outra face da sua moeda.

domingo, 19 de abril de 2009

Neta II

A sala cheirava a palavras duras. Nas três horas que passaram desde a entrada meteórica de Humberto Sousa nas vidas de Vanda e Filipa muito se disse. Lançaram-se pedras, que acertaram nos orgulhos dos agressores e agredidos, mas finalmente chegou-se a um consenso.

- Vanda, esta não é a hora certa para trazer o passado para a tona. Estou quase certo que o assassinato daquele jovem no rio e do miúdo que encontraram preso à composição em Santa Apolónia têm alguma coisa a ver com o desaparecimento do Mário.
- Mas o que é que o Mário tem a ver com as merdas onde você anda metido? - respondeu Vanda expelindo com as palavras baforadas de fumo, enquanto Filipa ia navegando, aparentemente distraída, pelo Messenger.
- Não é nada do meu trabalho. Aliás, já me reformei por invalidez, depois do que aconteceu...
- NÃO ME VENHA OUTRA VEZ COM ESSA CONVERSA! O Mário agiu apenas em legítima defesa, você é que o agrediu! Ele tentou pedir-lhe desculpas, mas você nunca o quis ouvir, renegou-o!!
- O MEU FILHO, O MEU PRÓPRIO FILHO, DEU-ME UM TIRO! Porra!...

Pararam de falar quando sentiram que a adolescente parou de teclar. Tinham sido ouvidos, e haveria muito para explicar, mas ficaria para depois.

Neste momento, tinham de percorrer atentamente os últimos dias do comerciante de sementes Mário Sousa, e não os últimos anos do filho Mário Sousa.

- ... Bom, pergunto-te novamente, Vanda: Tens alguma ideia, alguma pista que me leve à localização do Mário? Alguém lhe ligou a pedir alguma coisa de especial, ou para se deslocar para algum sítio fora do normal?
- Não, nada... Houve um homem que o chateou por querer uma ração especial para pombos, mas acho que eles se conheciam...
- Espera! Disseste... "pombos"? E que eles se conheciam?
- Sim! Era um cliente lá para os lados da Estalagem do Gado Bravo, com quem o Mário falava frequentemente. Aliás, agora que fala nisso, pareceu-me que uma vez o Mário não gostou muito da conversa com o gajo. Acho que o tipo queria saber muito sobre a vida alheia...

Humberto levantou-se num pulo, levando a nora e a neta a levantarem-se também por imitação. Pediu a Vanda que procurasse pelas chaves do armazém e lhas desse. Discutiram, mas o sogro transmutou-se de autoridade judiciária e convenceu-as a ficarem.

Retirou uma arma do coldre e poisou-a calmamente nas mãos de Vanda, com lágrimas de raiva pelas surpresas que o destino esconde nas suas sombras escuras: entrega para protecção das mulheres da vida do filho a arma com que esse mesmo filho o baleou.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Neta I

Humberto Sousa está sentado no carro há uma hora. À frente da casa do filho, da nora e da neta. Nervoso, sem saber como agir, com sentimentos digladiando-se no peito dorido.

A rua do Sobralinho vê a luz do sol descer suavemente, e o autocarro ascende ruidoso. Saem duas raparigas e um rapaz, adolescentes com as mochilas cheias de sonhos e sorrisos e conversas fúteis. A rapariga de cabelos castanhos-escuros ondulados despede-se dos colegas e dirige-se para o rés-do-chão enquanto procura pela chave. Humberto prepara-se para o embate, abrindo a porta e saindo do carro vagaroso.

-... Desculpa. Chamas-te Filipa? - pergunta o homem à rapariga de cabelos ondulados.
- O quê? Quem é você? - responde abrupta a jovem, estacando o corpo surpreendido pela abordagem.
- Peço desculpa por perguntar, mas eu sou o teu avô e estou à procura do teu pai...
- Avô?? Mas eu não tenho avô!

A rapariga entra no cabeleireiro, porta sempre aberta, olhando por cima do ombro o homem frustrado pela sua conhecida inaptidão para o diálogo com jovens, confirmado dramaticamente os tempos em que ainda dava guarida ao próprio filho...

- Olá, Filipa! Então vieste arranjar outra vez o cabelo, é? Esses namorados...
- Boa tarde, Beta. Desculpe ter entrado assim, mas está um tipo ali fora a dizer que é meu avô...
- Quem, aquele senhor??
- Sim! O que é que eu faço?
-... Acho que não precisas de fazer nada, Filipa. Olha ali a tua mãe a correr pela rua abaixo. Acho que eles se conhecem...

A mãe corre, anos de cigarros queimando nos pulmões, proveniente do lugar onde a boleia a deixou. Aproxima-se a passos largos do homem que Filipa nunca viu e, sem palavras, dá-lhe um estalo.
A música do cabeleireiro não deixa Filipa ouvir as palavras que se trocam depois, mas percebe que a mãe trata de expulsar o homem, apontando francamente para o infinito. A adolescente sai, a tempo de ouvir:

- ...Vanda, só vim perguntar uma coisa...
- Vá-se daqui. Saia daqui, JÁ!
- Vanda...
- VÁ-SE EMBORA, JÁ DISSE!
- Sabes onde está o meu filho?
- Não, não sabemos. Porquê?...

A mulher parou de gritar, e baixou as mãos. Deu-se conta de que apenas um motivo mais forte que o orgulho ou o amor-próprio traria Humberto Sousa à aldeia do Sobralinho.

Apenas um motivo de vida ou morte.

Olhou para a filha e disse-lhe: "Filipa, este é o teu avô."

domingo, 12 de abril de 2009

Terço verde fluorescente

O telemóvel tocou, e Pinto atendeu distraído enquanto andava de volta do computador que teimou em desligar do monitor. Rogava pragas às senhoras da limpeza quando repentinamente estacou.
- Estou, Inspector Pinto?
- Sim, quem fala?
- É Humberto Sousa, do caso do corpo que vocês encontraram no rio.
- Do corpo que você encontrou, quer dizer...
- Pois. Oiça, preciso de uma informação.
- Diga, colega.

Passava-se algo.


- O terço que me mostrou no saco... tinha alguma inscrição.
- Acho que sim, deixe-me ir buscar a pasta...

Pinto dirigiu-se à secretária desarrumada que fazia canto. Contornou-a, agarrou na pasta bege e passou rapidamente os dedos pelas peças da investigação, até encontrar três fotografias da prova. Na segunda estava uma data:

04:07:1969

O inspector no activo agarrou novamente no telemóvel pousado sobre a mesa, transmitiu a informação pelo éter e ouviu do outro lado a chamada cair.
Agarrou no casaco, ligou para Sequeira.

- Estou, Sequeira? Temos de ir imediatamente a casa daquele gajo ex-inspector que encontramos no caso do corpo no rio. Sacas a morada aí na base de dados e vens ter comigo à garagem?

Memória do passado II

- DEIXEM-ME IR PARA PORTUGAL! SEUS CABRÕES, DEIXEM-ME IR ENTERRAR A MINHA FAMÍLIA!!

No interior da tenda de campanha, um oficial miliciano recém viúvo estava prestes a incorrer em dezenas de infracções ao Código de Disciplina Militar. O coronel, o capitão e até mesmo o ordenança estavam solidários com a sua dor, mas sabiam da inflexibilidade das ordens provenientes da metrópole.

- Marques, acalme-se...
- ACALMO-ME? Eu quero lá saber se me dão uma porrada, ou mil! Eu tenho de ir para Portugal enterrar a minha mulher e o meu filho!! Vocês não percebem??
- ... Percebemos, Marques. Mas você é um alferes comando, numa zona em que estamos prestes a perder terreno para os pretos, e não nos podemos dar ao luxo de o dispensar agora. Porque é que não esperamos mais uma semana pelo seu substit...
- Eu não posso esperar, meu coronel! Eu não posso esperar nem mais um minuto...

Marques sentou-se, com a raiva a marejar-lhe os olhos e a ferir os punhos cerrados. Sabia que não o deixariam ir a tempo. Aliás, já não foi a tempo de se despedir em vida da mulher.
Lembra-se dos momentos anteriores ao embarque. Da alegria que reconhecia nos olhos da esposa sempre que ia de fim-de-semana a casa, e aparecia vestido de verde com a boina de lado.

"-Meu oficialzinho, estás tão bonito...!" dizia-lhe ela, entre o orgulho e a pirraça.

Marques nunca mais a ouviria rir. Não chegaria a ver o filho pelo qual aceitou vir para a frente de combate, na esperança de lhe ser reduzida a comissão de serviço e poder retornar. Não chegaria a abraçar a sua razão de viver.

Levantou-se. Saiu sem pedir escusa, com uma decisão que o impeliu a desgraçar a vida.

"- Santana, temos aqui uma das poucas situações em que me revolta liderar. Acho que perdemos um militar e um homem com futuro...", profetizou, pesaroso, o velho coronel de monóculo, com o seu pingalim reluzindo sobre a mesa de lona.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Memória do passado I

24 de Dezembro de 1969

A selva suava por todos os poros. Sousa, Sabino, Marques e Saul jogavam à sueca enquanto as armas repousavam numa palmeira e o calor espremia dos seus corpos toda a humidade que estes ainda continham.

Uma palanca negra observava de longe os quatro soldados, de postos diferentes mas com o mesmo ardor nos pés de tanto andar. Falavam de trivialidades, enquanto as cartas se sucediam em vazas que voavam rapidamente do centro da mesa para os seus lados. Não estavam sós, pois outros elementos do pelotão faziam as suas pequenas actividades civilizadas, mas estavam juntos.

A guerra em Angola não tinha ainda chegado ao seu pico, mas a guerrilha já dava muito trabalho aos militares portugueses, e cabia às patrulhas de reconhecimento prevenir a formação de bolsas inimigas.

Os quatro ribatejanos que, sem poderem escolher, foram incorporados em Mafra e daí seguiram para Caconda, faziam parte da companhia de Comandos que, naqueles dias, cumpriam a função de serem os olhos e ouvidos do Exército.

Patrulhavam extensas zonas profundamente esquecidas pelos mapas, tentando tornar reconhecível o que até então pertencia à natureza, em longos momentos de mato verde, capim dourado e estrelas brilhantes.

"Ó Sabino, saíste-me cá um cromo! Então com uma vaza puxada a Ouros, jogas essa dama, pá?!", troçava Saúl, enquanto observava pelo canto do olho Sousa e Marques que contavam mentalmente as cartas que já tinham saído até ao momento.

Queria baralhá-los, pois sabia que, como equipa, eles eram os melhores. Tanto Marques como Sousa sabiam bem o que fazer enquanto membros do pelotão, mas partilhavam também uma conexão mais profunda. Uma afinidade que os fazia faces diferentes de uma só moeda, num equilíbrio que os manteve vivos e sãos até àquele dia.

De repente, o velho rádio de campanha inicia uma roufenha mensagem...

Passaram-se aproximadamente quarenta segundos. O tempo que levou para uma bomba emocional explodir, envolta na curta mensagem transmitida.

Marques, que aguardava na província ultramarina pelo nascimento do seu primeiro filho em Portugal, acabara de saber que, a milhares de quilómetros, a esposa não tinha sobrevivido ao parto. Nem a criança.

Quando os camaradas se aperceberam de que algo de errado se passava, já Humberto Sousa previa que o seu parceiro de guerra, descanso e paz iria sentir-se demasiado desorientado. Levantou-se do toco de madeira que lhe serviu de assento e caminhou para o local onde Emanuel Marques tinha acabado de perder a sua vida.

O amigo ainda estava petrificado, gelado no meio do sufocante calor angolano, e as palavras que se disseram foram levadas rapidamente pelo vento que as raptou, embargadas que ficaram todas as vozes.

O que se seguiu foi surpreendente, apesar de tudo. Marques levantou-se, pegou na Walther que os oficiais recebiam antes de partir para a selva e colocou-a na boca. Premiu o gatilho mas nada aconteceu, e Sousa não deixou que ele desafiasse a sorte novamente. Tirou-lhe a arma da mão com um estalo rápido, encaixou o impacto dos murros que Marques lhe deu no peito e abraçou-o quando todas as ondas de choque culminaram num compulsivo choro.

Sousa tinha sido pai em Janeiro. Marques tinha prometido ser o padrinho de baptismo. Depois daquela missão a promessa não se cumpriu.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Garagem II

Quando Marques fechou a porta do frigorífico, a cerveja fresca na sua mão chocou com o calor e o suor e fê-lo sentir-se bem. Com a faca, retirou a cápsula e o som característico do ar entrando rapidamente na garrafa foi ouvido pelo torturado que, ainda preso na cadeira, chorava na sala ao lado.

Os pombos arrulhavam no exterior. Ouvia-se um cavalo ao longe a trotar, e o som de água a correr naturalmente dava uma sensação de paz e sossego. Falso.

O homem que bebia calmamente a sua cerveja saboreava, no ralo, um resto de sangue que se transferiu da faca para a garrafa. Não lhe soube bem, mas... enfim.

Limpou os lábios, caminhou para a sala contígua à cozinha e posicionou-se em frente a Mário Sousa, nesse momento apenas um corpo sem vontade própria que sangrava, chorava e continuava sem perceber absolutamente nada do que teria feito de tão errado na sua vida para estar naquele momento num tão gratuito sofrimento.

Tirou-lhe a venda da boca, pois Mário não teria forças nem coragem para, indefeso, começar a gritar.

"Sabes quem sou eu, rapaz? Sabes quem és tu, e porque estás aqui a fazer-me companhia tão amavelmente?", perguntou num sussuro Marques, o torturador.

E Mário Sousa não sabia que era no seu bilhete de identidade, mais precisamente na filiação paterna que quase esquecera, que estava a resposta.

Como poderia colocar essa hipótese, se não falava com o pai, Humberto, desde que saiu de casa nos primeiros anos da adolescência num exercíco de casmurrice contra casmurrice?

Mapeando o passado

Quando desceu do sótão do prédio e entrou em casa com a fotografia empoeirada na mão, dirigiu-se imediatamente para a gaveta dos papéis. Abriu-a, retirou uma folha de papel de um branco e brando A3 e uma caneta (resquícios de noites passadas desenrolando esquemas intrincados, ilícitos elaborados por mentes de elevado potencial criminal.

Foi para a mesa da sala, e a casa sentiu que mais uma ideia estava prestes a passar para o papel.

Escreveu os nomes dos colegas e as referências aos corpos, posicionando-os nas suas geografias relativas (Almeida e Sabino acima, cadáver 1 em Vila Franca e cadáver 2 em Santa Apolónia). Escreveu o seu próprio nome, e posicionou-se em Alhandra.

Sabendo que é comum os assassinos agirem num raio de aproximadamente 20 kilómetros, e que o presumível assassino reside muito provavelmente na outra margem do rio, Humberto puxou pelas suas memórias toponímicas.

"Porto Alto é muito longe. Benavente e Samora Correia também..."

Escreveu na folha o nome do suspeito: Marques.

Fez um círculo conectando todos os nomes, até que de repente a questão mais aterrorizadora que já perpassou pela sua cabeça o atingiu como um aríete:

ONDE ESTÁ O MEU FILHO?