sábado, 25 de abril de 2009

Cardíaco I

Sons indistintos. Sirenes, vozes, metais roçando uns nos outros.
Luzes. Sombras. Vultos e movimentos, entrecortando o claro e o escuro.

- Ele está a acordar! - ouve Humberto Sousa enquanto tenta abrir os olhos e toca com o braço em algo frio. A grade de uma maca que o transporta.
Fria.

Os inspectores Pinto e Sequeira fazem sinal para os bombeiros, e estes interrompem o apressado transporte do doente. Debruçam-se sobre o homem que, ainda perdido, retoma gradualmente a consciência e perguntam-lhe: - "Sousa, estavas à procura do quê?"

Esperam que os olhos do doente se abram.

Aguardam mais um pouco.

Indagam com gestos se deveriam insistir.
Os bombeiros e o médico do INEM fazem sinal de discordância.
Os inspectores deixam que se prossiga o transporte para o Hospital Reynaldo dos Santos.

Solavancos. A maca retrai as pernas metálicas quando embate na traseira da ambulância, e mãos hábeis posicionam correctamente a estrutura nos trilhos. Sousa ouve o fechar das portas, sente a viatura acelerar e vê o circular repetido da luz azul que acompanha a sirene.

"O que é que eu estava a fazer quando caí?", pensa. A memória, sente-a como se a tivesse perdido repentinamente.

Tenta agarrar a recordação mais próxima de si. Uma face adolescente, parecida consigo mas igualmente desconhecida, como uma actriz que se conhece mas da qual não recordamos no nome. Mas Sousa recorda-se do nome:
"...Filipa."

O estertor das memórias que numa catarata assomam à lembrança é travado pelo jovem bombeiro, que imediatamente lhe coloca as mãos sobre o peito.

- Senhor Humberto, tenha calma... O senhor teve um ataque cardíaco, e estamos agora a levá-lo para o hospital de Vila Franca. Não se mexa, pois pode sentir-se mal, está bem? Se me estiver a ouvir bem, pisque os olhos.

Sousa piscou. O bombeiro assentiu e deu indicações para o condutor avisar a PSP de que teria de agir quando chegassem.

Sousa percebeu que estava em maus lençóis. A invasão do armazém deve ter sido mal interpretada, pensariam que estaria a decorrer um assalto... e como Mário não tem o telemóvel ligado, as forças da ordem não terão conseguido esclarecer em tempo útil o mal-entendido.

Doía-lhe a mão esquerda. Tentou baixar os olhos, levantando-a ligeiramente. O papel rosa sobre o qual o punho se manteve fechado durante o período de inconsciência guardava o endereço de que precisava, o sítio onde Marques teria o seu filho.

Ninguém mais poderia fazer o que tinha de ser feito... Tinha de se libertar destas amarras rapidamente e perseguir, salvar, resolver.

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