terça-feira, 1 de setembro de 2009

Capuchinho Vermelho II

À contra-luz, a figura masculina que abriu a porta não se parecia com o jovem oficial miliciano que Humberto viu desertar em África. Mais encorpado, com menos cabelo, os ombros ligeiramente descaídos... era um cinquentão como ele, o criminoso do rio.

- Boa noite. - disse o homem.
- ... Olá. Desculpe incomodar, mas estava ali a pescar no rio e ouvi um grito vindo daqui deste lado. Precisa de ajuda, alguém se aleijou? - respondeu a rapariga com simpatia.
- Não sabe que é proibido pescar de noite no Tejo? - disse o homem com tom cordial.
- Não, não sabia... eu não sou desta zona, só vim cá experimentar...
- Sozinha?
-... Não, não. Vim com o meu pai, ele ficou a arranjar o material da pesca ali na margem do rio.
- Com o seu pai? De certeza?... - o homem parecia duvidar da veracidade das palavras da sua interlocutora.
- Sim, sim. Bom, então se calhar vou andando para casa. Boa noite e desculpe incomodar.
- "Vão" andando, certo?
- Desculpe? - a rapariga voltou-se novamente para o homem.
- A menina disse "vou" andando, e não "vamos" andando... Veja lá se não se esquece do seu pai... Há tanto abandono entre os idosos... - retorquiu calmamente o homem que se amparava languidamente no alpendre.
- Ah, claro! É maneira de falar! - e a rapariga retomou o caminho que fez desde a margem.

Refeito de toda a surpresa que constituiu o envolvimento da inocente rapariga na confusão, a que se juntou a possibilidade de rever com calma o seu adversário, Humberto deu por si a considerar a melhor forma de abordar o problema.

Tinha poucas opções e bastantes problemas... mas tinha ganho uma forma de ludibriar Marques, que entretanto entrou para a casa e fechou a porta atrás de si. Acompanhou à distância a rapariga que progressivamente acelerou a passada, até vê-la chegar perto de um pequeno barco.

"O barco onde Marques despejou o corpo do rapaz no rio!" - pensou Humberto com alguma alegria por ter encontrado uma prova circunstancial importante para o futuro.

A rapariga falava consigo mesma, decididamente aborrecida, e com gestos bruscos arrumava na mala os utensílios.

Margarida estava muito frustrada consigo própria. "Como é que eu ainda não aprendi a meter-me na minha vida, já com trinta anos??", murmurava... Até se calar, estarrecida.

Um homem de bata branca e arma na mão surgiu de entre o campo de trigo, sem qualquer som que a preparasse para tão inusitada presença.

Capuchinho Vermelho I

Humberto já não se lembrava de como era difícil caminhar descalço na terra. Os pés sofriam por pisar nas espigas esmagadas, como se o trigo quisesse num último estertor partilhar a sua frustração pelo abandono a que foi votado pelo Homem. E qualquer representante da raça serviria, mesmo um tipo armado caminhando ofegante envolto apenas por uma bata branca...

Os olhos do ex-inspector já se tinham habituado à noite e a casa abarracada já se via a algumas dezenas de metros. Era uma construção em declínio, com um alpendre e uma janela à esquerda da porta, iluminada no interior. Parecia-lhe difícil escancarar a porta e entrar a matar sem ferir Mário, por isso alguma solução teria de se arranjar para atrair o cabrão do Marques para o exterior.

"Porra, o Saul dava jeito...!", pensou Humberto enquanto massajava o peito quase inconscientemente. Sentia dor nas costas e nas articulações, mas só pensava em tirar o filho dali para fora e encher de chumbo o seu antigo camarada.

De repente, um vulto aparece no campo de visão. Uma silhueta feminina, proveniente do rio, caminha até à casa. "É mais baixa que a Vanda... quem será? Uma cúmplice?", pensou.

A voz feminina que passados alguns segundos ouviu rapidamente o esclareceu: "- Ó da casa?", chamou a rapariga, com voz jovial mas ligeiramente assustada. Porque ninguém respondeu do interior, a rapariga que parecia envergar botas e casaco oleado repetiu a pergunta, com tom de voz um pouco mais elevado.

"Pronto!, não me faltava mais nada... Uma capuchinho que se veio meter mesmo na boca do lobo!", praguejou Humberto.

E a porta da cabana abriu-se lentamente...

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Testemunha

Quando Margarida decidia que tinha mesmo de fazer alguma coisa, essa decisão nunca explodia. Fermentava devagarinho, como bolo no forno, até um dia os amigos ouvirem dizê-la: "Já venho, tenho uma coisa para fazer".

Quem a conhece já está habituado à distância entre a menção a um projecto ou decisão e a concretização efectiva dessa intenção, e não confunde maturação com adiamento. Porque não é que a Margarida adie.



Simplesmente aguarda pelo seu momento, como esta noite.

Margarida pensou, numa tarde perdida, que seria interessante pescar sável. Nunca o tinha feito, sabia que nas redondezas de Lisboa havia essa tradição piscatória, e pareceu-lhe entusiasmante passar uma noite a armadilhar, com as velhas galochas enterradas até ao joelho em lama e o oleado que a mãe lhe deu pelos 20 anos a acumular a condensação da humidade.

Àparte a partilha da ideia com os amigos que, desinteressados de aventuras, sorviam imperiais, não se mexeu... até se levantar hoje do sofá, agarrar no equipamento e conduzir à luz do crepúsculo até Vila Franca de Xira, passando para a estrada do Porto Alto. Estacionou na berma, equipou-se, respirou fundo e caminhou para a margem Norte do rio, acima da Ponte Marechal Carmona.

Quando terminou de lançar as armadilhas no Tejo, e reflectindo sobre a profundidade do caudal do rio, pensou: "De barco é que isto se fazia mesmo bem. Será que há para aí algum coco desocupado que eu pudesse usar?"
Riu-se, recordando os tempos de infância em São Martinho do Porto, quando pedia "emprestado" os barcos dos pescadores e ia para o largo da costa apanhar o robalo mais fugidio. E não pôde deixar de se lembrar das palmadas que levou da mãe à luz da delação dos lesados... Desde essa dolorosa punição (que meteu inclusivamente a entrega do peixinho pescado aos prejudicados) pescou sempre em rocha... mas esta noite iria variar.

Levantou-se, esticando a cabeça, e tentou vislumbrar um relance ou um brilho de algum barquito. E viu mesmo um! Estava a escassos metros acima, entre os arbustos que venceram os antigos campos de trigo. Caminhou até lá calmamente, e chegando ao pequeno barco (sem motor e com dois remos cobertos com um toldo escuro) pensou: "É isto mesmo!"

Margarida pousou a bagagem no chão e ouviu um grito aterrador que o vento trouxe do campo selvagem. Esta não seria uma simples noite de pesca, e uma bota inusitadamente enterrada na lama parecia indicar a Margarida a direcção da sua arrepiante curiosidade.


quinta-feira, 4 de junho de 2009

Investigação IV

- Os senhores sabem onde está o Saul?
Os pescadores olharam para os dois inspectores que, de dentro do carro, lhes perguntaram indelicadamente pelo conhecido alhandrense. E pensaram "Eles que o descubram", enquanto olharam para o reflexo das luzes da natureza na água do Tejo.

- Vai, segue até à casa dele, é nesta rua se não estou em erro...
- Consegues ler o endereço, Pinto?
- Acho que sim, é Rua Alves Redol... Número 15 ou 75, não consigo ver bem.

O carro seguiu pelas ruas escuras, de casas baixas e portas fechadas. A noite tinha um travo marítimo, e o odor das redes de pesca que secavam ao relento tornava-se mais intenso à medida que os inspectores se aproximavam da casa verde com o número 75 na porta. Os dois saíram, as luzes iluminaram a marcha e as sombras aproximaram-se da porta.
Quando a campainha soou, foi seguida de um silência que impacientou. Depois de mais dois toques igualmente sem resposta, Sequeira perguntou a Pinto: "E agora?" Pinto encolheu os ombros, e estavam quase a perder o rasto de Sousa e respectiva nora, quando viram um corpo cambaleante aproximando-se da casa.

- Sr. Saul?
- Quem são vocês, pá?... O que é que se passa? - respondeu o corpulento e alcoolizado homem que se encostou à esquina para não cair.
- Sr. Saul, estamos à procura do inspec... quer dizer, ex-inspector Humberto Sousa. Sabe onde é que ele está?
- Se sei onde está? Não, mas imagino que saiba o que está prestes a fazer?
- Do que fala? Olhe que o seu amigo vai-se meter numa alhada...
- CALEM-SE! Vocês, miúdos que acabaram de sair da merda da saia dos vossos pais, chegam aqui e pensam que sabem o que se passa. Não viveram a guerra... A guerra que nos lixou a cabeça a todos!

Os inspectores pensaram que não conseguiriam nada enquanto Saul não ingerisse uma colossal dose de café forte sem açúcar. Ainda lhe tiraram as medidas calculando que seria difícil manietá-lo, dada a diferença de envergaduras. Contudo, surpreendentemente a resposta chegou calmamente.

- Os "senhores" deviam ter conseguido descobrir o assassino antes do Sousa. Ele é um tipo às direitas, e um dos melhores inspectores que a PJ já teve... Mas está reformado, e vocês não foram melhores que ele...
- Mas o Humberto Sousa descobriu que matou os dois miúdos?
- Descobriu! Até eu descobri! Foi o Marques.
- Qual Marques?
- O desaparecido em combate Marques, desertor da guerra colonial, o cabrão mais implacável que Portugal viu nascer. Vocês têm de o encontrar.

Passados alguns minutos, o carro negro rolava na direcção da Ponte Marechal Carmona, no sentido do Porto Alto. No seu interior, o telemóvel recebia e cruzava dados biográficos com a Central, enquanto no Arquivo Histórico-Militar do Exército um sargento de dia estremunhado se arrastava para o arquivo empoeirado.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Luar no alpendre II

O carro parou suavemente na berma da estrada escura. A condutora e o pendura respiraram o ar pesado, pois a noite os fazia sentir um peso no peito.
Vanda lançou a mão e agarrou na caixa do medicamento, para dela retirar a bula.

Leu a posologia, murmurando, e confirmou que a dose que Humberto tinha no organismo era suficiente.

Recolocou a bula na caixa de letras verdes, e olhou para o homem que, ao seu lado, estava com a cabeça muito longe.

- Estás a pensar em quê, Humberto?
-... Hum? - respondeu Humberto Sousa, surpreendido pelas palavras.
- Estás a pensar em quê? - repetiu Vanda a pergunta.
- Estou a pensar que foi numa noite parecida com esta que vi pela última vez o homem que achamos que raptou o Mário. Numa noite tropical, também cheia de tensão e angústia...
- Pois, mas esta situação não deve ser nada como a que vocês viveram. Que eu saiba, este cabrão é doido e só fez mal até agora a quem nunca lhe fez nada!
- ... Tens razão, Vanda. Isto é muito diferente.

"Mas é também o mesmo dilema: pessoas que morrem, pessoas que sofrem", pensou Humberto.

-... Estás a ver este caminho, Vanda?
- Sim. É para seguirmos por aí?
- Não! O Marques ouvir-nos-ia chegar antes de nós próprios o percebermos...
- Então vamos a pé!
- Não é "vamos", é "vou". - retorquiu Humberto.
- Mas sou eu que tenho a arma, e tu estás um caco! Não podes ir só!
- Mas vou. Tu não vais estragar ainda mais a tua vida. Tens uma filha para criar, e toda este lodo é meu, não teu.

Vanda trocou um olhar ameaçador com Humberto. Estava decidida a não deixar Filipa crescer sem pai, a contrariar o destino que a fez crescer na ex-colónia com um pai mais ausente que muitos ausentes por falecimento.
No entanto, o olhar convicto não foi suficiente. Humberto pôs-lhe a mão no ombro, e seguidamente pegou calmamente na arma que a nora agarrava com firmeza.

Vanda entregou nas mãos de Humberto, um velho doente e vestido apenas com uma bata de hospital (não tinham encontrado nenhuma loja de roupa aberta àquela hora, nem puderam voltar atrás para Alhandra), a vida da sua família.

O homem velho saiu, e com passos lentos desapareceu no meio do trigo selvagem que a lua iluminava suavemente.

sábado, 23 de maio de 2009

Farmácia

Pinto e Sequeira chegaram ao local do assalto com dificuldade. Dezenas de residentes nas redondezas tinham-se aproximado demais da farmácia de serviço que acabara de ser vítima de assalto, não deixando espaço para o trabalho policial.

Os dois inspectores ouviam, à medida que iam avançando na direcção do néon verde, vozes acaloradas. Possíveis clientes, que se indignavam por lhes estar vedado o acesso aos medicamentos de que necessitavam: "... e agora vou para Alverca procurar uma farmácia para comprar leite para o miúdo?? Isto é uma vergonha!", vociferava um pai desesperado e com défice de horas de sono.

Quando conseguiram chegar à porta, deixando para trás os exasperados, encontraram-na fechada. A farmacêutica, no interior, estava sentada no banco reservado a quem mede a tensão. Olhando para um ponto indistinto na parede em frente.

Pinto deu dois pequenos toques na porta de vidro com o nó do dedo indicador direito, produzindo um som que a despertou, e a senhora levantou-se, foi buscar as chaves e abriu-lhes a porta.
Quando Pinto, Sequeira e os dois agentes que vieram tomar conta da ocorrência entraram, a forta fechou-se novamente e as vozes do exterior pareceram abafadas e distantes.

- Boa noite, nós somos os inspectores da Polícia Judiciária Pinto e Sequeira.
- Teresa Silva. Os senhores desculpem perguntar... mas é normal vir a Judiciária quando há uma situação destas? - respondeu a senhora, enquanto observava os quatro homens que a rodeavam.
- Não... - responderam os dois em uníssono. - Andamos atrás de umas pessoas e suspeitámos que tivessem tomado parte neste assalto. Por isso, enquanto os nossos agentes vão registando o que aconteceu, nós ficamos por aqui a ouvir, pode ser?
-... Claro, claro. Por acaso esta situação é a primeira vez que me acontece. Nunca tinha sido assaltada, esta zona é muito sossegada.

Sequeira olha por cima do ombro, para ver que os homens de azul não se deram ao trabalho de começar a tirar apontamentos. "Mas que porra...", pensou, enquanto lhes fez um sinal discreto para que puxassem dos seus cadernos.

- Pois, há sempre uma primeira vez para tudo... E diga-me: as pessoas que a assaltaram eram como?
- Não, foi só uma mulher.
- Só uma mulher? De que idade, mais ou menos?
- ... Entre os 45 e os 50, acho eu. Não sou lá muito boa nessas coisas...
- Não faz mal. E cabelos? Cor dos olhos?
- Castanhos, grisalhos. Também castanhos, mas não tenho a certeza porque foi tudo muito de repente.
Sequeira perguntou, então: "E ela fez exactamente o quê?"

Quando saíram da farmácia, os dois inspectores sabiam o mesmo e haviam chegado à mesma conclusão: estava a acontecer alguma coisa naquele momento, e o seu ex-colega Humberto Sousa e a nora Vanda estavam a caminho de um momento decisivo. Daqueles em que se desgraça o resto da vida.

- Como é que vamos saber para onde é que eles estão a ir, Pinto? Se o Sousa e a tipa não foram para um hospital nem para casa dela ou dele, no estado em que ele está, é porque os dois já sabem onde é que está o assassino dos crimes no rio.
- Epá, se não temos a sorte grande vamos tentar a aproximação. Tens aí nos apontamentos a morada daquele amigo do Sousa, o dono do barco em que eles vinham para Vila Franca de Xira quando encontrámos o primeiro corpo?
- O... Saúl? - respondeu Sequeira, enquanto se posicionava debaixo do candeeiro de rua para ler melhor o nome no bloco de notas castanho-escuro.
- Sim, esse mesmo.
- Tenho.
- Vamos lá.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Luar no alpendre I

A noite estava luminosa e sentia-se quente. O som do vento que se desviava das folhas de trigo era suave e as rodas dos carros rolando ao longe pela estrada davam o sinal de vida numa paisagem que parecia tocada pela imobilidade.
Marques olhava pela janela suja, enquanto a cerveja aplacava a sua sede, o lugar em que estava.

A cabana que ocupou quando a Companhia das Lezírias deixou de cultivar os terrenos próximos à estrada para o Porto Alto era uma das muitas arrecadções e barracões que serviram noutros tempos para o apoio ao trabalho da terra.

Também Marques um dia pensou que seria agricultor ou avieiro. Retirando do rio o sustento, numa vida com horizontes curtos, era o destino que pensava estar traçado. Até que, do Portugal soterrado pelo peso de um colonialismo fora de época, uma guerra o chamou.

Saíu, conheceu, formou-se e deformou-se na vida castrense, até ir para um continente onde se falava a sua língua mas no qual tudo o resto parecia retirado de um colorido livro de geografia. E aí descobriu que o destino, qual serpente, traça um sulco curvo nas vidas...

O filho do Sousa tinha desmaiado com a dor. Sangrava pouco devido aos garrotes, mas já tinha sentido a dilaceração da faca do mato, numa dor que a dada altura se terá tornado difusa quanto à sua origem.

Marques voltou-se para a cadeira de madeira escura ocupada com o desmaiado. Fazendo cunha com o pé, balançou-a e arrastou o filho do seu ex-companheiro de combate para o alpendre, virando-o para o campo semi-selvagem que se espalhava por toda a frente da casa. Agachou-se, retirou a mordaça, levantou-se novamente (devagar, com as costas ressentidas dos últimos esforços), e sentou-se.

"- Então, o que achas desta vista, rapaz?", perguntou calmamente Marques. Mário não se mexeu.

"- Sabes, Mário, não é que eu não tenha tentado, sabes? Seguir com a minha vidinha, tentar esquecer que os cabrões dos militares andavam atráz de mim... até emigrei para não me meter em problemas. Mas tenho de admitir que a minha vontade de me vingar de todos os que me desgraçaram a vida foi demasiado grande. Não conseguir dormir de noite, não conseguir olhar para uma criança sem imaginar a cara que o meu filho teria... E confesso, tem sido bom voltar à caçada."

Mário levantou a cabeça, e cuspiu um pouco do sangue que lhe sabia mal na boca. Olhou de soslaio para o seu torturador e disse:

- Nunca pensei que um dia desejaria ver o meu pai. Nunca pensei que compreenderia a sua maneira de ser. Nunca pensei sequer que teria em mim a vontade de matar alguém...
Mas vou sentir-me muito feliz quando ele chegar - sim, porque ele vai chegar - e te mandar desta para melhor, cabrão de merda...

Marques não respondeu, mas pensou em Deus. E em cortes profundos, sangue e tendões.

domingo, 3 de maio de 2009

Assalto

Os telefones negros estavam silenciosos, assistentes de uma conversa intrigante entre as paredes da esquadra de polícia de Vila Franca.
Dois bombeiros ainda em estado de estupefação pela forma inesperada como perderam um doente, dois inspectores da Polícia Judiciária que lançavam questões enigmáticas e um agente desorientado que tentava registar tudo num relatório...

- Mas diga-me, senhor Emanuel... Achou alguma coisa fora do normal no comportamento do paciente? Pareceu-lhe que ele estivesse a fingir? - perguntou Pinto, com o olhar cerrado.
- ... A fingir?? Mas se o homem teve um ataque cardíaco que o INEM esteve vai não vai para o declarar morto?! O inspector deve estar a brincar... - respondeu cheio de incredulidade o jovem bombeiro de tez negra.
- A brincar? A BRINCAR?? Mas você acha que a PJ não tem mais nada que fazer, para virmos aqui perder tempo convosco?? Nós estamos na peugada de um assassino muito perigoso, e parece-nos que o Humberto Sousa e a mulher que o libertou devem saber mais que nós desta porra toda! - respondeu Sequeira, dando um murro na mesa que levantou o teclado do agente.

Estavam todos perdidos, naquela sala. Até que o telefone negro tocou e os olhos se focaram no agente que respondeu ao chamamento do aparelho. Do outro lado uma voz falava ansiosa.

- ... Sim, sim, estou a perceber... Ah, e foi a que horas?... Hum, hum... Olhe, não mexa em nada que vou mandar já para aí um carro patrulha, ok? Não, não deixe ninguém entrar no local para não estragar a cena do crime, está bem?... O quê, é a única farmácia de serviço?... Olhe, não se preocupe com isso que nós vamos já para aí.

O agente de azul desligou o telefone. Levantou-se, foi até à sala contígua e passou a mensagem aos colegas que assistiam a um programa sobre bizarrias do mundo animal. Estes pediram aos seus corpos o favor de se mexerem, e saíram. O agente voltou a sentar-se no teclado para reiniciar a sua espinhosa tarefa.

Os inspectores retomaram as questões:
- Mas como era a mulher?
- Era uma quarentona, de cabelos grisalhos, com mais ou menos 1,70 mt.
- E que carro é que ela conduzia?
- Um Fiat Punto dos antigos, já dissémos...
- E dizem outra vez se for preciso, meu amigo.
-...
- E que tipo de arma é que ela vos apontou?
- Sei lá que tipo de arma era! Era uma pistola como as vossas, se calhar...
- E ela diss..

Interrompendo o interrogatório, um dos agentes que havia saído reentrava para confirmar com o relator a mensagem de há pouco.
- Ó Gouveia, tens mesmo a certeza que a única coisa que foi assaltada nesta farmácia foi uma caixa de Plavix?
- Sim, porquê?
- Nada, nada... é que os drogados não costumam roubar medicamentos para o coração...
- Ó Saraiva, a dona da farmácia disse que a assaltante não parecia janada. É a crise, pá.
- OK, estamos a sair.

A saída do agente que interrompeu não foi seguida do reinício do interrogatório. O agente Gouveia só se apercebeu disso alguns segundos depois, já os olhos dos interrogados e interrogadores tinham poisado sobre si.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou Gouveia.
- Depende. - respondeu Pinto.
- Você acabou de receber uma chamada a dizer que uma mulher sem aspecto de agarrada roubou um medicamento para o coração numa farmácia?
- Sim, porquê?...

Os inspectores saíram da sala e ainda conseguiram apanhar boleia da viatura que já tinha ligado as luzes e iniciado a marcha. Os bombeiros olharam um para o outro e perguntaram ao agente se podiam voltar para a corporação.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Cardíaco II

A estrada do Sobralinho para Vila Franca parecia afunilar, encolhendo-se à passagem acelerada da massa metálica branca e vermelha que iluminava de azul tudo em volta.
A ambulância seguia rápida para as urgências, com os tripulantes preocupados.

- Senhor Humberto, quer que contactemos com algum familiar, com alguém? O senhor não tinha telemóvel consigo quando o encontrámos.

O velho inspector, agora aparentemente frágil na prostração em que se encontrava, murmurou que não tinha ninguém a quem pedir ajuda. Tal não era verdade, e Sousa sabia-o. O amigo Saul não o deixaria ficar mal... Mas era melhor não envolver mais ninguém neste lodaçal em que se tornou a sua vida.

Reflectindo sobre as últimas etapas do mistério, algumas coisas tornaram-se muito provavelmente certas:

- O filho, Mário, estava em perigo

- Marques, o ex-camarada de armas que desertou naquela savana angolana, tinha-se tornado uma pessoa muito sombria, eventualmente por questões de stress pós-traumático


- A ligação entre os ex-amigos era tão forte que Marques iria prolongar a vingança pela frustração de não ter podido viver uma vida em família


- Ele próprio estava em piores condições físicas do que imaginaria


- A salvação do filho estava, quase certamente, no endereço que guardava na mão esquerda



Um impacto nas traseiras da ambulância, chapa contra chapa, acordou Humberto Sousa dos seus pensamentos. Os travões fizeram os pneus rugir no alcatrão, enquanto nova pancada estremeceu o interior da ambulância e fez tilintar os equipamentos.

- Emanuel, agarra-te bem que está um doido atrás de nós, pá!- gritou o condutor, enquanto tentava abrandar a marcha da viatura e procurava berma para encostar.
- Ó Ventura, mas consegues ver se é de propósito?
- Não... deixa-me parar aqui à frente da Cimianto para vermos os estragos. O paciente está bem?

O bombeiro Emanuel olhou para mim. Acenei que sim.

- OK, senhor Humberto, vamos parar só um segundo para tirarmos os dados do outro condutor. Não demoramos nada.

Quando Emanuel e Ventura abriram as respectivas portas, saltaram da ambulância para encontrarem uma arma apontada. "Porra...", sussurraram em coro espontâneo de incredulidade.

Quem lhes apontava a arma ordenou que ajudassem o paciente a levantar. De seguida, ordenou que o ajudassem a chegar ao carro de chapa batida que estava parado com o motor a trabalhar e um dos médios a funcionar. Finalmente, uma última ordem para se afastarem da ambulância esmurrada.

Retirada a chave que impediria os bombeiros de perseguirem o futuro veículo em fuga, a arma parou de ameaçar e a mão que a segurava entrou com o restante corpo para o lugar do condutor e engatou a primeira velocidade.

Já aceleravam há uns dois minutos, em direcção à ponte Marechal Carmona, quando falei:

- Vanda Carla, tens a certeza disto?
- Tenho. Vamos à morada que acabaste de me dar, salvamos o meu marido...e só confio em ti para fazeres o que for necessário para que isso aconteça. - respondeu-lhe a nora.

"Uma técnica de análises clínicas de meia-idade, um velho cardíaco e um revólver... Tem de ser suficiente."

sábado, 25 de abril de 2009

Cardíaco I

Sons indistintos. Sirenes, vozes, metais roçando uns nos outros.
Luzes. Sombras. Vultos e movimentos, entrecortando o claro e o escuro.

- Ele está a acordar! - ouve Humberto Sousa enquanto tenta abrir os olhos e toca com o braço em algo frio. A grade de uma maca que o transporta.
Fria.

Os inspectores Pinto e Sequeira fazem sinal para os bombeiros, e estes interrompem o apressado transporte do doente. Debruçam-se sobre o homem que, ainda perdido, retoma gradualmente a consciência e perguntam-lhe: - "Sousa, estavas à procura do quê?"

Esperam que os olhos do doente se abram.

Aguardam mais um pouco.

Indagam com gestos se deveriam insistir.
Os bombeiros e o médico do INEM fazem sinal de discordância.
Os inspectores deixam que se prossiga o transporte para o Hospital Reynaldo dos Santos.

Solavancos. A maca retrai as pernas metálicas quando embate na traseira da ambulância, e mãos hábeis posicionam correctamente a estrutura nos trilhos. Sousa ouve o fechar das portas, sente a viatura acelerar e vê o circular repetido da luz azul que acompanha a sirene.

"O que é que eu estava a fazer quando caí?", pensa. A memória, sente-a como se a tivesse perdido repentinamente.

Tenta agarrar a recordação mais próxima de si. Uma face adolescente, parecida consigo mas igualmente desconhecida, como uma actriz que se conhece mas da qual não recordamos no nome. Mas Sousa recorda-se do nome:
"...Filipa."

O estertor das memórias que numa catarata assomam à lembrança é travado pelo jovem bombeiro, que imediatamente lhe coloca as mãos sobre o peito.

- Senhor Humberto, tenha calma... O senhor teve um ataque cardíaco, e estamos agora a levá-lo para o hospital de Vila Franca. Não se mexa, pois pode sentir-se mal, está bem? Se me estiver a ouvir bem, pisque os olhos.

Sousa piscou. O bombeiro assentiu e deu indicações para o condutor avisar a PSP de que teria de agir quando chegassem.

Sousa percebeu que estava em maus lençóis. A invasão do armazém deve ter sido mal interpretada, pensariam que estaria a decorrer um assalto... e como Mário não tem o telemóvel ligado, as forças da ordem não terão conseguido esclarecer em tempo útil o mal-entendido.

Doía-lhe a mão esquerda. Tentou baixar os olhos, levantando-a ligeiramente. O papel rosa sobre o qual o punho se manteve fechado durante o período de inconsciência guardava o endereço de que precisava, o sítio onde Marques teria o seu filho.

Ninguém mais poderia fazer o que tinha de ser feito... Tinha de se libertar destas amarras rapidamente e perseguir, salvar, resolver.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Investigação III

Com a pressa de encontrar o seu destino, Sousa nem se lembrou de pedir a chave do armazém do filho à nora. Em frente ao portão, o crepúsculo iluminava ténue o labor de subtil arrombamento da fechadura.

O ex-inspector ainda sabia uns truques, e deu-lhe jeito no passado conseguir entrar onde tal não lhe era permitido... Mais uma vez o intento foi conseguido, e lá entrou no espaço amplo de armazenamento de cereais.

Sacas de diversas rações, para uma diversidade de animais, encontravam-se arrumadas de forma ordenada. No chão, os sapatos estalavam ao som de pequenas sementes que sempre escapavam dos recipientes para se espraiarem no piso de cimento cinza.

Humberto Sousa caminhou a passos largos para o canto que se assemelhava a um escritório, abriu a porta e procurou com os olhos por pastas de facturas.
Encontrou-as.

Sentou-se na cadeira de napa gasta, abriu o dossier verde cuja lombada dizia "Clientes/Recibos/2008", e começou a vasculhar. Interessavam-lhe entregas que a empresa tivesse efectuado em endereços entre Vila Franca de Xira e Porto Alto, eventualmente para moradias localizadas nas fronteiras dos terrenos da Companhia das Lezírias.

"Tem de estar aqui a casa do Marques... Tem de estar!", pensava Sousa, ansioso por saber para onde ir. Não sabia o que esse doido poderia ter-se lembrado de fazer ao Mário... E não conseguia parar de pensar nas vidas que estavam ligadas ao filho. Uma mulher, uma filha no início da idade adulta.

Repentinamente, o corpo queixou-se ao seu dono. Uma pontada no peito, quase cruzando todo o tórax até às costas, obrigou Humberto Sousa a levar a mão à camisa e a agarrá-la com força. Doía-lhe imenso, e sentia o chão a fugir... "Não posso parar, não posso parar!..."

Quando os elementos da PSP entraram no armazém, alertados por um vizinho que tinha presenciado o arrombamento e dado o alarme, não se tinham passado mais de dois minutos desde que o enfarte havia empurrado para o estado de inconsciência o velho detective.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Memória do passado III

O calor africano fustigava os militares, no exterior da tenda. Ouviam os gritos no interior, as vozes do coronel e do Tenente Marques cruzando-se em frases indistintas, enquanto tentavam aplacar o calor da pele com cervejas geladas que acabavam de chegar de Luanda.

Saul observava o semblante carregado na face de Humberto Sousa, e percebia que o camarada e amigo estava muito apreensivo com o desenrolar daqueles momentos.

- Sousa... O que achas disto, pá?
-... O que é que hei-de achar, Saúl? O Marques tem razão em querer ir para Portugal, está desorientado, e já mereceu sair deste lamaçal em que estamos metidos até aos joelhos. Mas não o vão deixar ir, e ele não é dos que aceitam um "não" como resposta...
- E tu, avieiro, aceitarias? Tens lá o teu miúdo rijo como um pêro, e a tua mulher é trabalhadora e saudável... Não conseguimos mesmo meter-nos na pele do Marques...
- Pois, Saúl. Mas não posso deixar que ele estrague a vida toda por causa de uma coisa que não pode remediar! A Maria morreu, o bebé não sobreviveu, e não há nada que ele possa fazer para fazer voltar o tempo atrás. A família deles já deve estar a tratar do funeral, e não há maneira de...

Olham para o desorientado conterrâneo, que sai de rompante da tenda com passos decididos. Levantam-se, poisando as cervejas meio bebidas, e dirigem-se para tentar abrandar o seu passo.

- Então, Marques, o que disse o coronel Spínola? Deu-te a licença?
- Não. Mas isso não me interessa.

Marques continuou a andar, na direcção do jipe, até que foi agarrado pelo braço por Sousa. Sacudiu a mão que o segurava, mas não conseguiu libertar-se, pelo que optou por confrontar Sousa.

- O que queres, porra?! Larga-me!
- ... Ouve, tens de ter calma...
- TENHO DE TER CALMA? Já te morreu alguém, cínico dum car...
- Pára, pá! Pára e ouve-me por um segundo! Tu não vais fazer nada que possa mudar o que já aconteceu. Nós estamos aqui, as nossas famílias estão lá, e as coisas acontecem...
- "As nossas famílias"? Nós neste momento não temos famílias, esqueces-te? Tu é que tens família!

Marques soltou-se da mão do amigo, de um salto subiu para o jipe. Ligou a ignição, engatou a mudança, e acelerou pelo capim, dirigindo-se para Norte, enquanto gritava "Agarrem-me se conseguirem, seus cabrões!".

Sousa ficou a ver um tenente do Exército português desertar, com subtracção de veículo militar, e teve aí a certeza que, entre as mais que prováveis perseguições pela Polícia Militar, a barra do Tribunal Militar e o presídio, muito dificilmente as vidas dos dois se sintonizariam novamente.

Havia perdido a outra face da sua moeda.

domingo, 19 de abril de 2009

Neta II

A sala cheirava a palavras duras. Nas três horas que passaram desde a entrada meteórica de Humberto Sousa nas vidas de Vanda e Filipa muito se disse. Lançaram-se pedras, que acertaram nos orgulhos dos agressores e agredidos, mas finalmente chegou-se a um consenso.

- Vanda, esta não é a hora certa para trazer o passado para a tona. Estou quase certo que o assassinato daquele jovem no rio e do miúdo que encontraram preso à composição em Santa Apolónia têm alguma coisa a ver com o desaparecimento do Mário.
- Mas o que é que o Mário tem a ver com as merdas onde você anda metido? - respondeu Vanda expelindo com as palavras baforadas de fumo, enquanto Filipa ia navegando, aparentemente distraída, pelo Messenger.
- Não é nada do meu trabalho. Aliás, já me reformei por invalidez, depois do que aconteceu...
- NÃO ME VENHA OUTRA VEZ COM ESSA CONVERSA! O Mário agiu apenas em legítima defesa, você é que o agrediu! Ele tentou pedir-lhe desculpas, mas você nunca o quis ouvir, renegou-o!!
- O MEU FILHO, O MEU PRÓPRIO FILHO, DEU-ME UM TIRO! Porra!...

Pararam de falar quando sentiram que a adolescente parou de teclar. Tinham sido ouvidos, e haveria muito para explicar, mas ficaria para depois.

Neste momento, tinham de percorrer atentamente os últimos dias do comerciante de sementes Mário Sousa, e não os últimos anos do filho Mário Sousa.

- ... Bom, pergunto-te novamente, Vanda: Tens alguma ideia, alguma pista que me leve à localização do Mário? Alguém lhe ligou a pedir alguma coisa de especial, ou para se deslocar para algum sítio fora do normal?
- Não, nada... Houve um homem que o chateou por querer uma ração especial para pombos, mas acho que eles se conheciam...
- Espera! Disseste... "pombos"? E que eles se conheciam?
- Sim! Era um cliente lá para os lados da Estalagem do Gado Bravo, com quem o Mário falava frequentemente. Aliás, agora que fala nisso, pareceu-me que uma vez o Mário não gostou muito da conversa com o gajo. Acho que o tipo queria saber muito sobre a vida alheia...

Humberto levantou-se num pulo, levando a nora e a neta a levantarem-se também por imitação. Pediu a Vanda que procurasse pelas chaves do armazém e lhas desse. Discutiram, mas o sogro transmutou-se de autoridade judiciária e convenceu-as a ficarem.

Retirou uma arma do coldre e poisou-a calmamente nas mãos de Vanda, com lágrimas de raiva pelas surpresas que o destino esconde nas suas sombras escuras: entrega para protecção das mulheres da vida do filho a arma com que esse mesmo filho o baleou.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Neta I

Humberto Sousa está sentado no carro há uma hora. À frente da casa do filho, da nora e da neta. Nervoso, sem saber como agir, com sentimentos digladiando-se no peito dorido.

A rua do Sobralinho vê a luz do sol descer suavemente, e o autocarro ascende ruidoso. Saem duas raparigas e um rapaz, adolescentes com as mochilas cheias de sonhos e sorrisos e conversas fúteis. A rapariga de cabelos castanhos-escuros ondulados despede-se dos colegas e dirige-se para o rés-do-chão enquanto procura pela chave. Humberto prepara-se para o embate, abrindo a porta e saindo do carro vagaroso.

-... Desculpa. Chamas-te Filipa? - pergunta o homem à rapariga de cabelos ondulados.
- O quê? Quem é você? - responde abrupta a jovem, estacando o corpo surpreendido pela abordagem.
- Peço desculpa por perguntar, mas eu sou o teu avô e estou à procura do teu pai...
- Avô?? Mas eu não tenho avô!

A rapariga entra no cabeleireiro, porta sempre aberta, olhando por cima do ombro o homem frustrado pela sua conhecida inaptidão para o diálogo com jovens, confirmado dramaticamente os tempos em que ainda dava guarida ao próprio filho...

- Olá, Filipa! Então vieste arranjar outra vez o cabelo, é? Esses namorados...
- Boa tarde, Beta. Desculpe ter entrado assim, mas está um tipo ali fora a dizer que é meu avô...
- Quem, aquele senhor??
- Sim! O que é que eu faço?
-... Acho que não precisas de fazer nada, Filipa. Olha ali a tua mãe a correr pela rua abaixo. Acho que eles se conhecem...

A mãe corre, anos de cigarros queimando nos pulmões, proveniente do lugar onde a boleia a deixou. Aproxima-se a passos largos do homem que Filipa nunca viu e, sem palavras, dá-lhe um estalo.
A música do cabeleireiro não deixa Filipa ouvir as palavras que se trocam depois, mas percebe que a mãe trata de expulsar o homem, apontando francamente para o infinito. A adolescente sai, a tempo de ouvir:

- ...Vanda, só vim perguntar uma coisa...
- Vá-se daqui. Saia daqui, JÁ!
- Vanda...
- VÁ-SE EMBORA, JÁ DISSE!
- Sabes onde está o meu filho?
- Não, não sabemos. Porquê?...

A mulher parou de gritar, e baixou as mãos. Deu-se conta de que apenas um motivo mais forte que o orgulho ou o amor-próprio traria Humberto Sousa à aldeia do Sobralinho.

Apenas um motivo de vida ou morte.

Olhou para a filha e disse-lhe: "Filipa, este é o teu avô."

domingo, 12 de abril de 2009

Terço verde fluorescente

O telemóvel tocou, e Pinto atendeu distraído enquanto andava de volta do computador que teimou em desligar do monitor. Rogava pragas às senhoras da limpeza quando repentinamente estacou.
- Estou, Inspector Pinto?
- Sim, quem fala?
- É Humberto Sousa, do caso do corpo que vocês encontraram no rio.
- Do corpo que você encontrou, quer dizer...
- Pois. Oiça, preciso de uma informação.
- Diga, colega.

Passava-se algo.


- O terço que me mostrou no saco... tinha alguma inscrição.
- Acho que sim, deixe-me ir buscar a pasta...

Pinto dirigiu-se à secretária desarrumada que fazia canto. Contornou-a, agarrou na pasta bege e passou rapidamente os dedos pelas peças da investigação, até encontrar três fotografias da prova. Na segunda estava uma data:

04:07:1969

O inspector no activo agarrou novamente no telemóvel pousado sobre a mesa, transmitiu a informação pelo éter e ouviu do outro lado a chamada cair.
Agarrou no casaco, ligou para Sequeira.

- Estou, Sequeira? Temos de ir imediatamente a casa daquele gajo ex-inspector que encontramos no caso do corpo no rio. Sacas a morada aí na base de dados e vens ter comigo à garagem?

Memória do passado II

- DEIXEM-ME IR PARA PORTUGAL! SEUS CABRÕES, DEIXEM-ME IR ENTERRAR A MINHA FAMÍLIA!!

No interior da tenda de campanha, um oficial miliciano recém viúvo estava prestes a incorrer em dezenas de infracções ao Código de Disciplina Militar. O coronel, o capitão e até mesmo o ordenança estavam solidários com a sua dor, mas sabiam da inflexibilidade das ordens provenientes da metrópole.

- Marques, acalme-se...
- ACALMO-ME? Eu quero lá saber se me dão uma porrada, ou mil! Eu tenho de ir para Portugal enterrar a minha mulher e o meu filho!! Vocês não percebem??
- ... Percebemos, Marques. Mas você é um alferes comando, numa zona em que estamos prestes a perder terreno para os pretos, e não nos podemos dar ao luxo de o dispensar agora. Porque é que não esperamos mais uma semana pelo seu substit...
- Eu não posso esperar, meu coronel! Eu não posso esperar nem mais um minuto...

Marques sentou-se, com a raiva a marejar-lhe os olhos e a ferir os punhos cerrados. Sabia que não o deixariam ir a tempo. Aliás, já não foi a tempo de se despedir em vida da mulher.
Lembra-se dos momentos anteriores ao embarque. Da alegria que reconhecia nos olhos da esposa sempre que ia de fim-de-semana a casa, e aparecia vestido de verde com a boina de lado.

"-Meu oficialzinho, estás tão bonito...!" dizia-lhe ela, entre o orgulho e a pirraça.

Marques nunca mais a ouviria rir. Não chegaria a ver o filho pelo qual aceitou vir para a frente de combate, na esperança de lhe ser reduzida a comissão de serviço e poder retornar. Não chegaria a abraçar a sua razão de viver.

Levantou-se. Saiu sem pedir escusa, com uma decisão que o impeliu a desgraçar a vida.

"- Santana, temos aqui uma das poucas situações em que me revolta liderar. Acho que perdemos um militar e um homem com futuro...", profetizou, pesaroso, o velho coronel de monóculo, com o seu pingalim reluzindo sobre a mesa de lona.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Memória do passado I

24 de Dezembro de 1969

A selva suava por todos os poros. Sousa, Sabino, Marques e Saul jogavam à sueca enquanto as armas repousavam numa palmeira e o calor espremia dos seus corpos toda a humidade que estes ainda continham.

Uma palanca negra observava de longe os quatro soldados, de postos diferentes mas com o mesmo ardor nos pés de tanto andar. Falavam de trivialidades, enquanto as cartas se sucediam em vazas que voavam rapidamente do centro da mesa para os seus lados. Não estavam sós, pois outros elementos do pelotão faziam as suas pequenas actividades civilizadas, mas estavam juntos.

A guerra em Angola não tinha ainda chegado ao seu pico, mas a guerrilha já dava muito trabalho aos militares portugueses, e cabia às patrulhas de reconhecimento prevenir a formação de bolsas inimigas.

Os quatro ribatejanos que, sem poderem escolher, foram incorporados em Mafra e daí seguiram para Caconda, faziam parte da companhia de Comandos que, naqueles dias, cumpriam a função de serem os olhos e ouvidos do Exército.

Patrulhavam extensas zonas profundamente esquecidas pelos mapas, tentando tornar reconhecível o que até então pertencia à natureza, em longos momentos de mato verde, capim dourado e estrelas brilhantes.

"Ó Sabino, saíste-me cá um cromo! Então com uma vaza puxada a Ouros, jogas essa dama, pá?!", troçava Saúl, enquanto observava pelo canto do olho Sousa e Marques que contavam mentalmente as cartas que já tinham saído até ao momento.

Queria baralhá-los, pois sabia que, como equipa, eles eram os melhores. Tanto Marques como Sousa sabiam bem o que fazer enquanto membros do pelotão, mas partilhavam também uma conexão mais profunda. Uma afinidade que os fazia faces diferentes de uma só moeda, num equilíbrio que os manteve vivos e sãos até àquele dia.

De repente, o velho rádio de campanha inicia uma roufenha mensagem...

Passaram-se aproximadamente quarenta segundos. O tempo que levou para uma bomba emocional explodir, envolta na curta mensagem transmitida.

Marques, que aguardava na província ultramarina pelo nascimento do seu primeiro filho em Portugal, acabara de saber que, a milhares de quilómetros, a esposa não tinha sobrevivido ao parto. Nem a criança.

Quando os camaradas se aperceberam de que algo de errado se passava, já Humberto Sousa previa que o seu parceiro de guerra, descanso e paz iria sentir-se demasiado desorientado. Levantou-se do toco de madeira que lhe serviu de assento e caminhou para o local onde Emanuel Marques tinha acabado de perder a sua vida.

O amigo ainda estava petrificado, gelado no meio do sufocante calor angolano, e as palavras que se disseram foram levadas rapidamente pelo vento que as raptou, embargadas que ficaram todas as vozes.

O que se seguiu foi surpreendente, apesar de tudo. Marques levantou-se, pegou na Walther que os oficiais recebiam antes de partir para a selva e colocou-a na boca. Premiu o gatilho mas nada aconteceu, e Sousa não deixou que ele desafiasse a sorte novamente. Tirou-lhe a arma da mão com um estalo rápido, encaixou o impacto dos murros que Marques lhe deu no peito e abraçou-o quando todas as ondas de choque culminaram num compulsivo choro.

Sousa tinha sido pai em Janeiro. Marques tinha prometido ser o padrinho de baptismo. Depois daquela missão a promessa não se cumpriu.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Garagem II

Quando Marques fechou a porta do frigorífico, a cerveja fresca na sua mão chocou com o calor e o suor e fê-lo sentir-se bem. Com a faca, retirou a cápsula e o som característico do ar entrando rapidamente na garrafa foi ouvido pelo torturado que, ainda preso na cadeira, chorava na sala ao lado.

Os pombos arrulhavam no exterior. Ouvia-se um cavalo ao longe a trotar, e o som de água a correr naturalmente dava uma sensação de paz e sossego. Falso.

O homem que bebia calmamente a sua cerveja saboreava, no ralo, um resto de sangue que se transferiu da faca para a garrafa. Não lhe soube bem, mas... enfim.

Limpou os lábios, caminhou para a sala contígua à cozinha e posicionou-se em frente a Mário Sousa, nesse momento apenas um corpo sem vontade própria que sangrava, chorava e continuava sem perceber absolutamente nada do que teria feito de tão errado na sua vida para estar naquele momento num tão gratuito sofrimento.

Tirou-lhe a venda da boca, pois Mário não teria forças nem coragem para, indefeso, começar a gritar.

"Sabes quem sou eu, rapaz? Sabes quem és tu, e porque estás aqui a fazer-me companhia tão amavelmente?", perguntou num sussuro Marques, o torturador.

E Mário Sousa não sabia que era no seu bilhete de identidade, mais precisamente na filiação paterna que quase esquecera, que estava a resposta.

Como poderia colocar essa hipótese, se não falava com o pai, Humberto, desde que saiu de casa nos primeiros anos da adolescência num exercíco de casmurrice contra casmurrice?

Mapeando o passado

Quando desceu do sótão do prédio e entrou em casa com a fotografia empoeirada na mão, dirigiu-se imediatamente para a gaveta dos papéis. Abriu-a, retirou uma folha de papel de um branco e brando A3 e uma caneta (resquícios de noites passadas desenrolando esquemas intrincados, ilícitos elaborados por mentes de elevado potencial criminal.

Foi para a mesa da sala, e a casa sentiu que mais uma ideia estava prestes a passar para o papel.

Escreveu os nomes dos colegas e as referências aos corpos, posicionando-os nas suas geografias relativas (Almeida e Sabino acima, cadáver 1 em Vila Franca e cadáver 2 em Santa Apolónia). Escreveu o seu próprio nome, e posicionou-se em Alhandra.

Sabendo que é comum os assassinos agirem num raio de aproximadamente 20 kilómetros, e que o presumível assassino reside muito provavelmente na outra margem do rio, Humberto puxou pelas suas memórias toponímicas.

"Porto Alto é muito longe. Benavente e Samora Correia também..."

Escreveu na folha o nome do suspeito: Marques.

Fez um círculo conectando todos os nomes, até que de repente a questão mais aterrorizadora que já perpassou pela sua cabeça o atingiu como um aríete:

ONDE ESTÁ O MEU FILHO?

quarta-feira, 25 de março de 2009

Recordações

O sótão estava cheio. Pó, caixas de ladrilho cola, latas de tinta velha, sacos pretos de conteúdo indefinido, tudo formava uma estrutura de formas indistintas e cores baças.

Tossindo ligeiramente por reflexo, Humberto agachou-se enquanto se perguntava onde tinha deixado o que procurava. Pensava que estaria por ali, eventualmente debaixo de um dos sacos, ou atrás das caixas de materiais de construção... Removeu, arrastou, levantou, espreitou.

Lá estava ela.

Com a mão direita pegou-lhe, enquanto a esquerda amparava a queda de coisas diversas. Sacando a caixa, deixou que a gravidade levasse a sua avante, e o pó deu mais umas piruetas, à luz dos finos raios de sol que entravam pelas frestas dos azulejos transparentes.

"Cá estão os despojos de guerra". Abrindo a caixa que estava coberta de selos antigos, Humberto deu um mergulho em memórias de um continente e de uma vida que ficaram lá atrás, noutro tempo...

As mãos foram afastando com cuidado os objectos que o jovem furriel miliciano em Angola acumulou e guardou: umas munições de G3, algumas penas de pássaros exóticos, recortes de notícias da guerra e do futebol, postais da metrópole. Mas eram as fotografias que lhe interessavam.

Passou-as de dedos para dedos. Olhou bem. Retirou uma e sentou-se em cima das caixas sujas e frias, enquanto a certeza sem provas e baseada unicamente no instinto o ia soterrando na aflição.

"Queres ver que o Marques está por trás disto?", perguntava-se.

sábado, 14 de março de 2009

Surpresa

-"Humberto, Humberto, 'tás em casa?"

A mão fechada batia à porta com estrondo, acordando Humberto do seu sono de meio da tarde. Os joelhos já enferrujados ajudaram o corpo estremunhado a levantar do sofá, enquanto as folhas dos jornais esvoaçam para o chão, espalhando-se pelos ladrilhos.

Abrindo a porta, ainda lutando para se libertar de Morfeu, Humberto não consegue esconder um tom algo irritado pela forma intempestiva como Saúl se fez anunciar:

-"O que é que tu queres, porra? Chegas aqui aos grit..."
-"Tu sabes quem é o pai do rapaz que tiraram do rio todo esfacelado, pá? O Sabino!"
-"Sabino? Qual Sabino?"
-"O Sabino, pá, que esteve connosco em África na guerra, não te lembras? Acabei de receber uma chamada da mulher dele a informar que o funeral é amanhã...", e Saúl entrou e sentou-se na cadeira de madeira escura.

Humberto ficou em pé, à porta da sala, vendo o amigo sentado e a paisagem de folhas de jornal que coloriam o chão. Os neurónios perdiam o turvo demasiado lentamente para processar a informação recebida. "Dava tudo para beber um whisky...", pensa.

Saúl continua à espera.
-"Então, Humberto, isto diz-te alguma coisa sobre o crime, ou ainda não concluiste nada?"
-"Não, nem sequer me tinha apercebido dele lá. Já não vejo o Sabino há tantos anos que de certeza nem o reconheceria se nos cruzássemos na rua, quanto mais em fotografias de jornais..."
-"Pois, tu nunca foste muito de comparecer nos encontros da nossa malta... Bom, o funeral do miúdo é amanha, queres vir?", aquiesce em voz baixa Saúl, sem querer trazer ao de cima velhas memórias dos tempos ultramarinos.
-"Não, Saúl... Diz-me só uma coisa: o Sabino anda metido em alguma coisa de manhoso? Tens alguma ideia?"
-"Acho que não, ele tem uma lojinha de electrodomésticos que montou após a guerra, lá para os lados do Carregado", responde o pescador, convicto.

Afinal as suspeitas de o corpo poder ter sido largado mais a Norte confirmam-se. Provavelmente o assassino é daquela zona.

-"É verdade, pá, e aquilo do miúdo? Duas desgraças em Vila Franca na mesma altura, é galo...", perguntou Saúl. O amigo não respondeu, mas fechou o punho, a impotência latejando nas veias.

-"O Almeidinha também está derreado...", murmura Saúl, levantando-se como quem vai fazer mais alguma coisa (vício de pescador, sempre à procura de aproveitar mais um pouco do tempo).

-"Espera aí! O Almeidinha é o pai da criança que encontraram presa ao comboio??"
-"É, porquê? Em Vila Franca toda a gente fala nisso! Não sabias? Uma triste coincidência, dois ex-camaradas nossos perderem os filhos assim, de forma tão estúpida..."

As peças do puzzle começaram a formar uma imagem na cabeça de Humberto Sousa.

domingo, 8 de março de 2009

Flash noticioso

Sentado na poltrona de padrões com péssimo gosto, o corpo esgotado apenas mexia o dedo indicador, ordenando que os canais da tv saltassem à vez, numa cacofonia de imagens e sons desconexos.

Até que se deteve num novo canal de notícias-choque, onde o aparato visual parecia indiciar que algo havia sucedido.

A jornalista, com ar de quem nunca viu a vida real até ao momento em que lhe puseram o microfone, tentava descrever o que sucedia para o público vampiricamente àvido de informações detalhadas e cheias de sumo.

"...É como se pode ver atrás de mim, os bombeiros estão agora a tentar desamarrar da composição o corpo do rapaz. Aparentemente alguém prendeu Jonas Almeida, o rapaz que desde ontem tinha sido dado como desaparecido em Vila Franca de Xira, às traseiras deste comboio regional que habitualmente faz o percurso entre Tomar e Lisboa Santa Apolónia. Ao que se sabe, o rapaz foi pendurado à composição já morto ou gravemente ferido, pelos ferimentos que apresenta. Não é possível obter até ao momento as reacções da família emocionada, ou qualquer outra pista sobre o que terá levado alguém a um acto tão bárbaro..."

A câmara que filmava a jornalista focava agora as movimentações nas sua costas, tentando apanhar imagens mais ilustrativas, mas à aparte a multidão que se juntou e alguns casacos vermelhos e azuis que se deslocavam cuidadosamente pelo trilho da linha, nada de especial era possível captar.

Nada, a não ser uma figura familiar. A de um certo ex-inspector da Judiciária, que via toda a cena enquanto as lágrimas fugiam dos seus olhos em direcção ao solo.

-"Não fiques triste, Humberto Sousa... De certeza que esse rapaz não iria ser ninguém na vida, tão ganancioso que era!..." falou o homem de corpo esgotado, enquanto sorria.

Tinha sido deveras cansativo apanhar, matar e prender o rapazinho ao comboio (principalmente a parte de apanhar, pois a idade não perdoa...), mas esta imagem chorosa, transmitida com a cumplicidade televisiva, certamente que compensava...

quarta-feira, 4 de março de 2009

Investigação II

Jardim de Vila Franca. Manhã. Frio.

Os miúdos jogam à bola, indiferentes à temperatura baixa que se fazia sentir. Os corpos agitados, sorridentes, disputam a bola sem medo de quedas, esfoladelas ou querelas pela vitória.

Humberto, que andou em passos largos e confiantes entre o carro e o pequeno ajuntamento de divertidos, abrandou a passada. Os miúdos sempre foram o seu ponto fraco quando era inspector.
Nunca soube como os abordar, compreender... como extrair o melhor das suas mentes, para benefício das investigações em que se viu envolvido.

"Bom, o que tem de ser tem de ser", pensou, enquanto levantava a mão direita.

-"Eh, rapazes, cheguem aqui, se faz favor!", convocou.
-"O que é, sócio?", pergunta o rapaz mais espigadote, de bola debaixo do braço. Humberto revira os olhos e pensa que esta vai ser uma conversa difícil...
-"Algum de vocês viu o que se passou ontem ali no cais?"
-"Então não vimos! Foi bueda fixe, não foi? O tipo 'tava todo marado...", respondeu o mesmo espigadote, olhando para os amigos que se aproximavam, em busca de aprovação grupal. Todos riram.
-" Pois... bom, e algum de vocês viu alguma coisa esquisita? Alguém vos fez um pedido estranho enquanto a polícia estava de volta do corp.... da situação?"
Todos abanaram a cabeça negativamente, com ar surpreso. Humberto percebeu que as suas competências psicológicas não lhe permitiriam obter ali informação útil .
-"OK, então fazemos assim: eu tenho aqui um cartãozinho com o meu número de telemóvel. Se algum de vocês tiver informações sobre o que aconteceu, liguem-me que vou ficar muito agradecido."
-" Ah, 'tá bem... E o que é que a gente ganha com isso, sócio?"
-"Prometo que vos dou umas alvíssaras à maneira!"
-"Alviquê??"
-"Recompensa. Uma recompensa jeitosa."
-"Ah...". O espigadote deixa cair a bola no chão, chutando-a para a zona onde jogavam quando foram interrompidos, e todos correm para reaquecer os corpos que esfriavam.

Enquanto os vê afastarem-se, Humberto sente que este caminho o conduziu a um beco sem saída. Uma caixa cheia de peças que tanto podem ser um puzzle incompleto, mas com sentido, como simples acasos sem sentido.


Enquanto vê o homem velho afastar-se, Jonas aproxima-se do Salinas.
-"Puto, deixa lá ver o cartão do velho."
-"Para quê, Jójó? Queres ir fazer uma visita ao lar de idosos, é?", responde Salinas com um riso gozão, enquanto entrega o cartão beje e prossegue com a disputa da redonda.
-"Achas que sim, otário? Vou mas é mijar e deito essa merda fora!"
Pedro afasta-se com ar despreocupado, até entrar no Pavilhão. Dirige-se à cabine telefónica, introduz algumas moedas, liga para um número que decorou na noite anterior.
-"Quem é?", atende uma voz.
-"Sou eu, o Jójó."
-"Ah... Então, tens novidades?"
-"Acho que sim... Veio cá aquele tipo de ontem, do barco que você me pediu para deixar a carta...perguntar se algum de nós sabia alguma coisa do que aconteceu... Deixou um cartão com o número de telefone."
-"Ai sim?... Dá-me lá esse nome e número, então...", pede a voz calmamente.
-"E guito? Não ganho nada?"
-"Rapaz, rapaz... a ganância é um pecado mortal, não andaste na catequese? Enfim, dá-me o que te pedi, e hoje mesmo vou aí dar-te mais 100 euros, ok?"

O rapaz saltou de animação, com o auscultador na mão esquerda e o cartão na mão direita, e a conversa continuou por mais alguns segundos. Foi a última alegria que teve.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Investigação I

Humberto põs-se a caminho logo pela manhã. Saindo de casa, virou decidido para o quiosque e comprou todos os jornais do dia.

Sentado na mesa do café, enquanto digeria lentamente o croissant e o galão passava de quente a morno, ia passando pelas folhas dos matutinos até se fixar nas notícias do crime.

"Crime no rio", o título da caixa do jornal mais lido dos portugueses, encimava um texto recheado de imprecisões e suposições idiotas, mas as fotografias não mentem.

E eram as fotografias que interessavam.

"Para me conseguir deixar um bilhete dentro do barco, o cabrão do assassino teve de se aproximar. Pode ser que, entre tantas fotografias, alguma objectiva tenha capturado."

Viam-se muitas cabeças indistintas nas imagens. Cabelos, casacos, olhos curiosos, mas nada de distinto, a não ser... aquela criança de pouco mais de metro e vinte que, numa fotografia, se vê de costas para o Avieirinho, como que afastando-se depois de ter feito alguma coisa.

"O gajo deve ter dado dinheiro ao puto para ele depositar a carta no barco! Porra! Logo eu, que não tenho jeito nenhum com miúdos, vou ter de andar à procura de um fedelho..."

- "Traz a conta, Zé, que tenho pressa."
- "Senhor Humberto, já vai? Parecia aí tão cheio de tempo para gastar...", respondeu o empregado de mesa/dono do estabelecimento/humorista de trazer por casa chamado José.
- "Não, Zé. Agora tenho cada vez menos tempo, pois o ferro malha-se é quando está quente. Até logo!", respondeu Humberto, já com a cabeça a trabalhar.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Garagem I

Na garagem da vivenda insuspeita, ouve-se o som metálico de aço sendo afiado. A faca raspa uma e outra vez na pedra de amolar, preguiçosa mas inevitável.

O silêncio que ocupa os momentos que se seguem não é de calmaria. O homem anda de roda, coçando o queixo de barba desfeita, faca na outra mão, sem saber bem qual o melhor destino para aquele momento.



"Cortar, serrar, esmagar, morder... Tantas e tantas opções!", pensava, rindo. É verdade o que se diz dos momentos definitivos na vida: o que verdadeiramente importa é aproveitar a escalada, pois o prazer de estar no topo do propósito não supera - definitivamente, não supera - o labor da ascensão.


Certamente, M. aproveitaria muito bem o momento. O homem firmemente amarrado à cadeira, com cola tapando a boca sangrada, chorava com uma expressão entre o patético e o comovente.

Para o homem de faca afiada, cada lágrima da sua vítima emociona.

Mas o frémito toma conta da mão armada, e a opção por serrar concretiza-se, crua e excruciante.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Negra noite

Luzes apagadas, apenas um fugaz brilho amarelado do candeeiro de rua insistia em combater a total escuridão.

No sofá, permaneci sentado muitas horas, com a carta que reli vezes demais na mão direita. Ávido de respostas, esperei que o assassino mas desse com o que escreveu, mas...


Será que ele me conhece/reconhece de algum lugar, ou é apenas louco?

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Barco III

A tarde fugia depressa, enquanto as palavras trocadas entre nós os quatro (eu, Saul e os inspectores Pinto e Sequeira) eram analisadas minuciosamente por cada um. Olhando para a porta do Gaivota e para o lusco-fusco que deixava entrar, o meu amigo pescador perguntou:

-"Humberto, como é que voltamos para Alhandra? Vamos ancorar aqui o Avieirinho e regressar a pé pela linha do comboio, visto que não trouxe dinheiro nenhum comigo?"

Os inspectores atalharam caminho: não nos aconselhavam a deixar ali o barquito, pois aquele local teria de ser dragado para tentarem encontrar mais provas (com sorte, as partes em falta no cadáver...).

- "Vá, companheiros, se não se importam vamos seguindo então viagem, ok?", resumi, confiante de que sabia mais do que os restantes interessados neste enigma.

Saímos do restaurante, trocando conversas de circunstância sobre o frio, este Inverno surpreendentemente rigoroso e a sede das pessoas por casos sinistros como este ("A Manuela e o Moniz já têm história para uma semana e tal de telejornal-shows", gracejou Sequeira).

O cadáver já se encontrava na viatura, pelo que subimos a bordo enquanto os polícias e mergulhadores - surpresos por sermos liberados - pediam a Pinto e Sequeira desenvolvimentos.

Os locais viam-nos, das janelas das casas encostadas à linha.

Os curiosos viam-nos, do jardim e do amontoado humano que se formou para lá da linha vermelha e branca que delimitou o lugar do achado.

Enquanto arrancávamos para Sul e Saul me entregava sem palavras a acompanhar a carta anónima que tinha encontrado no chão da embarcação, o assassino via-nos.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Interrogatório

Já estávamos sentados no Gaivota há demasiado tempo para os nossos interrogadores acharem que a coisa estava a correr bem. Enquanto os vilafranquenses ao balcão tentavam parecer desinteressados, os nossos "amigos" aumentavam o tom de voz...

- "Vocês não vão dizer porque é que vinham de barco precisamente para o local onde o corpo foi encontrado, com um tempo destes?", perguntou o que parecia mais tenrinho.

- "Não sei do que é que o senhor está a falar, nós só estávamos à pesca!", respondeu Saul, aparentemente ríspido mas, no fundo, gozando em antecipação com o momento em que descobrissem que eu era um deles (ou fui...).

- "Oiçam, a indicação que a polícia recebeu foi de que uma pessoa viu o corpo hoje de manhã e fez uns sinais para um barco que estava no meio do rio! Isto não é uma informação que se consiga esconder, e vocês dois poderiam ser perfeitamente o tipo da margem e o tipo do barco que a nossa testemunha viu. Acham que temos algum problema em mandar-vos para a cadeia por uma noite ou duas, até que as coisas se esclareçam?"

Bom, estava na hora de largar a minha intenção de prosseguir com esta investigação a solo.

- "Cavalheiros, não se enervem...", respondi-lhes, enquanto me levantei lentamente para não alvoroçar o ambiente. Aproximei-me do nosso interrogador mais maduro, e mostrei-lhe a identificação da minha carteira.

Sem uma palavra, afastou-se para segredar algumas palavras ao colega mais exaltado. O seu rosto pareceu, simultaneamente, suspreso e aliviado. É que de nós não estava a conseguir mesmo nada...

- "Bom, parece que aqui o Humberto já vos deu uma ideia da razão pela qual estávamos a passar por ali numa tarde manhosa como esta." Saul sabia que estava na hora de todos nós trocarmos algumas impressões (e de ele, que percebia menos que nós do que se passava, ser introduzido no problema).

- "Bom, eu sou o inspector Pinto e este é o inspector Sequeira." Cumprimentámo-nos, como se estivéssemos a fazer um reset à desagravável conversa anterior, enquanto os surpreendidos assistentes faziam um esforço ainda maior para parecerem desinteressados do diálogo.

- "O que é que acha disto, inspector-chefe Humberto?.. Foi você quem passou por aqui hoje de manhã?"

- "Fui. Pareceu-me ver qualquer coisa na água, mas quando me aproximei não fiquei certo do que tinha visto e lembrei-me de pedir ao meu amigo aqui para virmos à tarde confirmar. Não queria fazer figuras tristes, não é, colegas?", despachei, com uma história que lhes deu apenas o suficiente para não passar por mentiroso e abrir o caminho da confiança e consequente troca de informações.

-" Claro, bate quase tudo certo com o que a testemunha disse. E o barco que de manhã lá estava? O inspector conhecia a pessoa, comunicou?..."

-"Não, não. Parecia-me apenas um pescador qualquer, que me fez adeus por confusão com alguém..."

- "OK. Bom, vamos então com o corpo para o Instituto Nacional de Medicina Legal, para ver se percebemos que tipo de corte levou à perda dos membros. E tentar identificar a causa de morte, claro. Em princípio iremos pedir-lhe que venha lá à sede fazer-nos uma visita para prestar mais declarações, como o inspector sabe..."

- "Não se preocupem, desde que me reformei nunca mais lá fui e sempre tenho uma razão para matar saudades da minha malta. Já agora... O que acham disto? Já deu para algumas conclusões?"

- "Conclusões propriamente, não... mas de certeza que teremos muito que escavar, nesta história, como pode ver", disse Pinto, enquanto me mostrava dois sacos plásticos com objectos inusitados: uma anilha de pombo e um pequeno terço em plástico verde fluorescente.

"Isto está a tornar-se cada vez mais interessante...", pensei para comigo, enquanto ia começando a acumular peças soltas de um puzzle progressivamente complexo.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Barco II

"Eles já descobriram o corpo!", pensei, em pé e praguejando impropérios enquanto o barco se aproximava do centro das nossas atenções.

- "Ó Humberto, mas tu já sabias disto?", perguntou Saul, já suspeitando que teríamos algo a ver com o aparato que formigava no cais.

- "Sim, Saul. Hoje de manhã passei aqui e...". Uma mão emergiu da água e agarrou-se ao barco, balançando-nos. Numa reacção instintiva, ambos dobrámos os joelhos para reencontrarmos o equilíbrio, enquanto víamos a cabeça e o ombro do mergulhador aparecer por entre a água suja do Tejo.

Sem tirar o bocal de respiração, fez-nos sinal para nos aproximarmos da margem, onde os curiosos e profissionais dividiam atenções entre as manobras de recuperação do cadáver de onde escorria ainda água e lodo e a nossa "convocatória".

Quando conseguimos saltar da embarcação para o cais, os dois homens de aspecto duro e judiciário que antes observavam com cara de caso a ascensão do cadáver agarraram nos braços de cada um de nós, suave mas firmemente.

- "Os senhores por favor cheguem aqui."
- "Eu vou se eu quiser! Mas quem é você!?" respondeu, abrupto e natural, Saul, enquanto com um puxão libertou o braço da pressão.
- "Oiça, não vamos fazer uma cena. Somos da Judiciária, e só vos queremos fazer umas perguntas...", respondeu o que me acompanhava, enquanto nos mostrava a identificação.
- "Ah, bom! Ó Humberto, estes..."
- "Sim, Saul, pára lá com fitas e vamos lá saber o que é que estes cavalheiros querem connosco.", cortei rapidamente. Eles ainda não precisavam se saber que eu era inspector-chefe reformado, e é sempre interessante ver como nos vão encarar até que eu o comunique...

Antes de entrarmos nas instalações do Restaurante Gaivota, aparentemente transformado num temporário posto de controlo de operações cheio de bombeiros barrigudos encostados ao balcão e apoiados nas cervejas e nas histórias de aventuras em mar e fogo, ainda pensei:

"Será que eles nos querem interrogar por podermos ser testemunhas, ou... por estarmos de barco?"

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Barco I

Enquanto a pequena embarcação verde deslizava pela placidez do Tejo, com um calmo Saul ao leme do pequeno motor de fora de bordo, eu tentava concentrar-me, por entre anzóis, redes húmidas e baldes por lavar.
"Será que já conseguiremos ver bem o cadáver? Espero que não estejam por lá muitos curiosos..."

Uma voz amadurecida por muitos anos de whiskey surpreendeu os meus pensamentos com uma frase bem-disposta:
"Ouve lá, pá, explica-me lá bem como é que me convenceste a vir para o rio com este tempo!... Eu devo é estar maluco..."

O Saul é um dos meus mais antigos amigos. Alhandrense de gema, nascido e criado nos avieiros, é daqueles tipos com os quais por vezes cansa conviver, de tão extrovertidos que são. Mas também é um dos melhores e mais seguros amigos que se pode ter, tanto para uma farra de cair para o lado como para uma cena de pancadaria ferrada (e tivémos algumas...).

"Ó velhadas, tu já foste mais rijo, não foste?"

"E ainda sou, Humberto, e ainda sou... Aliás, acho que esta carne já estava a ficar amolecida, com tanto sofá! Mas daí a virmos para o rio, para explorares uma coisa de que não falas, vai um grande passo..."

Quando ia a responder com justificações meio esfarrapadas, o barco contornou a fábrica do arroz que inicia Vila Franca e o aparato que vi quase me atropelou!

Uma ambulância, três veículos da polícia, mais de quinze pessoas (bombeiros, polícia, alguns responsáveis políticos, até câmaras fotográficas disparando flashes), e dois colegas meus (ou melhor, ex-colegas), todos observando o trabalho de dois mergulhadores de negro que removiam um corpo do lodaçal.

Ou melhor, duas pernas e um torso, sem braços nem cabeça.

É nestas horas que não consigo conter um sonoro praguejar!

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Em casa

Em casa, na sala, sentado com os braços sobre a mesa, tentei pensar sobre que informações tinha e o que podia fazer com elas.

- O sapato era do tipo mocassin. Não é um modelo de sapato que se use no Inverno, pois é arejado e não protege devidamente da chuva nem do frio... a não ser que sejamos jovens. Os adolescentes têm uma espécie de triunfo do racional sobre o físico, pois vejo miúdas de saia curta com 8º e rapazes de t-shirt em manhãs de enregelar, tudo em nome da aparência e da pertença aos seus grupos;

- O pé que ocupava o sapato, de tamanho 38 a 40, parecia magro, mas também é verdade que, estando de cabeça para baixo, o sangue deixaria inevitavelmente de ocupar os vasos sanguíneos do membro inferior...;

- Se o barqueiro me mostrou a mão, nada me garante que o pedaço de corpo que encontrei seja integralmente o restante do assassinado... Pode muito bem ser apenas a perna, ou a metade inferior do cadáver;

- Depois de se ter revelado, o barqueiro remou para a nascente do Tejo;

"Bom, então posso concluir que a vítima será uma pessoa do sexo masculino, entre os 15 e os 30 anos, eventualmente residente a Norte de Vila Franca (faz-me sentido que, se o barqueiro largou o corpo mais acima, este talvez tenha descido o rio até se fixar no lodo na baixa da maré). Deixa lá ver se..."

Levantei-me de rompante e fui até ao saco dos jornais, donde retirei o jornal "Mirante" (um semanário regional distribuído gratuitamente com o Expresso na nossa região). Folheei-o uma e outra vez, com atenção às notícias mais pequenas, mas o jornal não dá conta de nenhum desaparecimento.

"Porra!", murmurei, enquanto agarrei no telefone e teclei o número do Saul.

"Estou, Saul? Tás bom, rapaz? Olha lá, queres ir dar uma voltinha de barco?..."

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Recolhimento

Depois de ver o barco subir o rio até se tornar apenas um ponto indistinto da paisagem, olhei para a esquerda, onde estava o pé e o sapato. A subida das águas já submergia totalmente o sinistro achado.

Olhei para o relógio. "12:10. Então a maré deve baixar novamente pelas 18:00..." pensei. Esta questão colocou um novo problema: tinha de decidir, neste momento, se queria investigar sozinho este caso, ou se o iria denunciar à polícia.

A esquadra fica a uns meros 150 metros do cais de Vila Franca.
Já não me meto nestas alhadas desde que me reformei da Judiciária.
O motivo da minha reforma contrariada e prematura, ainda o sinto quente no peito...

"Mas o gajo do barco viu-me. Sabe que descobri o crime, mas não está a contar com o azar de um ex-inspector da PJ passar precisamente por este lugar nesta hora... De certeza que ele terá pensado que me aterrorizou e que fui a correr, esbracejando, pedir ajuda dos senhores de azul!..."

Ainda indeciso, olhei novamente em redor para ver se mais alguém teria assistido a toda esta cena, a adrenalina ainda circulando pelo meu corpo e fazendo tamborilar os meus dedos nervosos nas pernas.

"Ninguém. Óptimo, vou seguir com esta investigação a sós, enquanto conseguir!"

Dirigi-me para o carro. sacudindo a sujidade que já secava na minha roupa, não queria encardir os estofos ainda mais.
Sentei-me e fiz os usuais movimentos de início da marcha lentamente, ainda a processar mentalmente o que sabia sobre o que aconteceu.

O que não sabia era que alguém me observava, resguardado por uma janela onde o tímido sol de Domingo se reflectiu, numa segunda traição aos meus sentidos.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A mão

"Uma mão decepada!"

Estático, ainda com as calças sujas e o tubo na mão direita, vi o barqueiro baixar-se novamente para pousar a mão que acabara de me mostrar. Reerguendo-se novamente, levou os binóculos à face de novo, certamente para ver a reacção que me tinha causado.
Fiquei ainda uns dois segundos sem saber bem como reagir.

Deveria comunicar com ele por gestos, ou pelo menos parecer menos idiota do que estava a parecer?
Com o tubo, apontei para o lodo, onde estava o pé e o sapato quase submergidos pela subida da maré e pela chuva nebulosa daquela bizarra manhã.

O barqueiro de panamá abanou a cabeça afirmativamente.
"Ele sabe que está aqui um corpo!"
O barqueiro de panamá apontou para si mesmo, indicador afirmativamente apontado para o peito.
"Ele matou esta pessoa!"

Calmamente, o barqueiro sentou-se, mergulhou a extremidade de dois remos na água e deu meia volta na direcção da Ponte Marechal Carmona remando pela cinza água do Tejo, enquanto um arrepio gélido me estremeceu.

"E agora?"

Um barco ao longe

... um súbito reflexo de luz, proveniente do rio, fez-me perder o já precário equilíbrio e escorreguei!
Rugindo asneiras em catadupa, pus-me de pé para verificar a dimensão dos "estragos" (fiquei com as calças sujas de lama, e raspei a mão com que tentei amparar a queda), tão aborrecido que quase me esquecia do que me fez cair.
Num barco no meio do rio, a aproximadamente 200 metros de onde eu e o corpo enterrado no lodo nos encontrávamos, uma pessoa observava-nos com uns binóculos.
"A luz do sol reflectiu-se no vidro do binóculo, de certeza".

Aparentemente do sexo masculino, o barqueiro vestia um oleado verde com panamá a condizer, e via-me sem pudores.
Acenei.
Acenou-me também. Agachou-se, então, e num movimento lento, levantou uma mão e mostrou-ma durante alguns segundos.

Mas a mão não era a dele.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Decisão I

"Ok, tenho de ter certeza do que estou a ver", pensei, hesitante.
A chuva escorria-me pelas mangas do casaco, e as minhas pernas já sentiam o tecido frio e molhado das calças, mas... Tinha mesmo de tentar saber se estava à frente da minha descoberta ou se a imaginação (e a vontade de ver alguma emoção entrar novamente na minha vida) me estava pregar uma cruel partida.
Olhei em volta, à procura de uma vara suficientemente comprida que me permitisse tocar no sapato e vislumbrar um pouco mais da perna. Encostados à parede, alguns restos de recentes obras incluíam um tubo com o comprimento quase ideal.
Agarrei-o, húmido e sujo de terra, e desci cuidadosamente pela rampa de acesso dos barcos, mas tive de me esticar todo para conseguir tocar no sapato.
E, quando o fiz...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O que faço?

Quando me recompus do rasgo profundo no marasmo daquele Domingo que foi a descoberta do sapato e da respectiva perna, olhei em redor.
Não estava ninguém a passear nas imediações, não havia nenhuma alma à janela, não se ouvia qualquer som humano naquela manhã fria e chuvosa.
O que faço?
Agachei-me, para tentar inutilmente confirmar a minha visão anterior, mas os óculos estavam molhados das gotículas de chuva, e tirei-os para os limpar à minha camisola enquanto ganhava tempo para pensar sobre qual a melhor atitude a tomar... Denunciar? Calar? Comprar o almanaque Borda d'Água para saber qual a hora da próxima baixa-mar?
E a maré, entretanto, subia e submergia o objecto dos meus pensamentos...

O início

O início desta história?... Bom, tudo começa como previsível. Houve um crime.
Quando neste Domingo passeei pela margem norte do rio, vi algo que não sei bem se me pareceu logo macabro ou apenas vulgar, nesta parte do mundo.
Um sapato, visível na maré baixa, sobressaía do lodaçal.
Atacadores brancos, acinzentados pela sujidade.
Sola de borracha, sem padrões.
Uma perna saindo da sua extremidade, enterrando-se profundamente na lama.