terça-feira, 21 de abril de 2009

Memória do passado III

O calor africano fustigava os militares, no exterior da tenda. Ouviam os gritos no interior, as vozes do coronel e do Tenente Marques cruzando-se em frases indistintas, enquanto tentavam aplacar o calor da pele com cervejas geladas que acabavam de chegar de Luanda.

Saul observava o semblante carregado na face de Humberto Sousa, e percebia que o camarada e amigo estava muito apreensivo com o desenrolar daqueles momentos.

- Sousa... O que achas disto, pá?
-... O que é que hei-de achar, Saúl? O Marques tem razão em querer ir para Portugal, está desorientado, e já mereceu sair deste lamaçal em que estamos metidos até aos joelhos. Mas não o vão deixar ir, e ele não é dos que aceitam um "não" como resposta...
- E tu, avieiro, aceitarias? Tens lá o teu miúdo rijo como um pêro, e a tua mulher é trabalhadora e saudável... Não conseguimos mesmo meter-nos na pele do Marques...
- Pois, Saúl. Mas não posso deixar que ele estrague a vida toda por causa de uma coisa que não pode remediar! A Maria morreu, o bebé não sobreviveu, e não há nada que ele possa fazer para fazer voltar o tempo atrás. A família deles já deve estar a tratar do funeral, e não há maneira de...

Olham para o desorientado conterrâneo, que sai de rompante da tenda com passos decididos. Levantam-se, poisando as cervejas meio bebidas, e dirigem-se para tentar abrandar o seu passo.

- Então, Marques, o que disse o coronel Spínola? Deu-te a licença?
- Não. Mas isso não me interessa.

Marques continuou a andar, na direcção do jipe, até que foi agarrado pelo braço por Sousa. Sacudiu a mão que o segurava, mas não conseguiu libertar-se, pelo que optou por confrontar Sousa.

- O que queres, porra?! Larga-me!
- ... Ouve, tens de ter calma...
- TENHO DE TER CALMA? Já te morreu alguém, cínico dum car...
- Pára, pá! Pára e ouve-me por um segundo! Tu não vais fazer nada que possa mudar o que já aconteceu. Nós estamos aqui, as nossas famílias estão lá, e as coisas acontecem...
- "As nossas famílias"? Nós neste momento não temos famílias, esqueces-te? Tu é que tens família!

Marques soltou-se da mão do amigo, de um salto subiu para o jipe. Ligou a ignição, engatou a mudança, e acelerou pelo capim, dirigindo-se para Norte, enquanto gritava "Agarrem-me se conseguirem, seus cabrões!".

Sousa ficou a ver um tenente do Exército português desertar, com subtracção de veículo militar, e teve aí a certeza que, entre as mais que prováveis perseguições pela Polícia Militar, a barra do Tribunal Militar e o presídio, muito dificilmente as vidas dos dois se sintonizariam novamente.

Havia perdido a outra face da sua moeda.

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