quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Investigação I

Humberto põs-se a caminho logo pela manhã. Saindo de casa, virou decidido para o quiosque e comprou todos os jornais do dia.

Sentado na mesa do café, enquanto digeria lentamente o croissant e o galão passava de quente a morno, ia passando pelas folhas dos matutinos até se fixar nas notícias do crime.

"Crime no rio", o título da caixa do jornal mais lido dos portugueses, encimava um texto recheado de imprecisões e suposições idiotas, mas as fotografias não mentem.

E eram as fotografias que interessavam.

"Para me conseguir deixar um bilhete dentro do barco, o cabrão do assassino teve de se aproximar. Pode ser que, entre tantas fotografias, alguma objectiva tenha capturado."

Viam-se muitas cabeças indistintas nas imagens. Cabelos, casacos, olhos curiosos, mas nada de distinto, a não ser... aquela criança de pouco mais de metro e vinte que, numa fotografia, se vê de costas para o Avieirinho, como que afastando-se depois de ter feito alguma coisa.

"O gajo deve ter dado dinheiro ao puto para ele depositar a carta no barco! Porra! Logo eu, que não tenho jeito nenhum com miúdos, vou ter de andar à procura de um fedelho..."

- "Traz a conta, Zé, que tenho pressa."
- "Senhor Humberto, já vai? Parecia aí tão cheio de tempo para gastar...", respondeu o empregado de mesa/dono do estabelecimento/humorista de trazer por casa chamado José.
- "Não, Zé. Agora tenho cada vez menos tempo, pois o ferro malha-se é quando está quente. Até logo!", respondeu Humberto, já com a cabeça a trabalhar.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Garagem I

Na garagem da vivenda insuspeita, ouve-se o som metálico de aço sendo afiado. A faca raspa uma e outra vez na pedra de amolar, preguiçosa mas inevitável.

O silêncio que ocupa os momentos que se seguem não é de calmaria. O homem anda de roda, coçando o queixo de barba desfeita, faca na outra mão, sem saber bem qual o melhor destino para aquele momento.



"Cortar, serrar, esmagar, morder... Tantas e tantas opções!", pensava, rindo. É verdade o que se diz dos momentos definitivos na vida: o que verdadeiramente importa é aproveitar a escalada, pois o prazer de estar no topo do propósito não supera - definitivamente, não supera - o labor da ascensão.


Certamente, M. aproveitaria muito bem o momento. O homem firmemente amarrado à cadeira, com cola tapando a boca sangrada, chorava com uma expressão entre o patético e o comovente.

Para o homem de faca afiada, cada lágrima da sua vítima emociona.

Mas o frémito toma conta da mão armada, e a opção por serrar concretiza-se, crua e excruciante.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Negra noite

Luzes apagadas, apenas um fugaz brilho amarelado do candeeiro de rua insistia em combater a total escuridão.

No sofá, permaneci sentado muitas horas, com a carta que reli vezes demais na mão direita. Ávido de respostas, esperei que o assassino mas desse com o que escreveu, mas...


Será que ele me conhece/reconhece de algum lugar, ou é apenas louco?

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Barco III

A tarde fugia depressa, enquanto as palavras trocadas entre nós os quatro (eu, Saul e os inspectores Pinto e Sequeira) eram analisadas minuciosamente por cada um. Olhando para a porta do Gaivota e para o lusco-fusco que deixava entrar, o meu amigo pescador perguntou:

-"Humberto, como é que voltamos para Alhandra? Vamos ancorar aqui o Avieirinho e regressar a pé pela linha do comboio, visto que não trouxe dinheiro nenhum comigo?"

Os inspectores atalharam caminho: não nos aconselhavam a deixar ali o barquito, pois aquele local teria de ser dragado para tentarem encontrar mais provas (com sorte, as partes em falta no cadáver...).

- "Vá, companheiros, se não se importam vamos seguindo então viagem, ok?", resumi, confiante de que sabia mais do que os restantes interessados neste enigma.

Saímos do restaurante, trocando conversas de circunstância sobre o frio, este Inverno surpreendentemente rigoroso e a sede das pessoas por casos sinistros como este ("A Manuela e o Moniz já têm história para uma semana e tal de telejornal-shows", gracejou Sequeira).

O cadáver já se encontrava na viatura, pelo que subimos a bordo enquanto os polícias e mergulhadores - surpresos por sermos liberados - pediam a Pinto e Sequeira desenvolvimentos.

Os locais viam-nos, das janelas das casas encostadas à linha.

Os curiosos viam-nos, do jardim e do amontoado humano que se formou para lá da linha vermelha e branca que delimitou o lugar do achado.

Enquanto arrancávamos para Sul e Saul me entregava sem palavras a acompanhar a carta anónima que tinha encontrado no chão da embarcação, o assassino via-nos.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Interrogatório

Já estávamos sentados no Gaivota há demasiado tempo para os nossos interrogadores acharem que a coisa estava a correr bem. Enquanto os vilafranquenses ao balcão tentavam parecer desinteressados, os nossos "amigos" aumentavam o tom de voz...

- "Vocês não vão dizer porque é que vinham de barco precisamente para o local onde o corpo foi encontrado, com um tempo destes?", perguntou o que parecia mais tenrinho.

- "Não sei do que é que o senhor está a falar, nós só estávamos à pesca!", respondeu Saul, aparentemente ríspido mas, no fundo, gozando em antecipação com o momento em que descobrissem que eu era um deles (ou fui...).

- "Oiçam, a indicação que a polícia recebeu foi de que uma pessoa viu o corpo hoje de manhã e fez uns sinais para um barco que estava no meio do rio! Isto não é uma informação que se consiga esconder, e vocês dois poderiam ser perfeitamente o tipo da margem e o tipo do barco que a nossa testemunha viu. Acham que temos algum problema em mandar-vos para a cadeia por uma noite ou duas, até que as coisas se esclareçam?"

Bom, estava na hora de largar a minha intenção de prosseguir com esta investigação a solo.

- "Cavalheiros, não se enervem...", respondi-lhes, enquanto me levantei lentamente para não alvoroçar o ambiente. Aproximei-me do nosso interrogador mais maduro, e mostrei-lhe a identificação da minha carteira.

Sem uma palavra, afastou-se para segredar algumas palavras ao colega mais exaltado. O seu rosto pareceu, simultaneamente, suspreso e aliviado. É que de nós não estava a conseguir mesmo nada...

- "Bom, parece que aqui o Humberto já vos deu uma ideia da razão pela qual estávamos a passar por ali numa tarde manhosa como esta." Saul sabia que estava na hora de todos nós trocarmos algumas impressões (e de ele, que percebia menos que nós do que se passava, ser introduzido no problema).

- "Bom, eu sou o inspector Pinto e este é o inspector Sequeira." Cumprimentámo-nos, como se estivéssemos a fazer um reset à desagravável conversa anterior, enquanto os surpreendidos assistentes faziam um esforço ainda maior para parecerem desinteressados do diálogo.

- "O que é que acha disto, inspector-chefe Humberto?.. Foi você quem passou por aqui hoje de manhã?"

- "Fui. Pareceu-me ver qualquer coisa na água, mas quando me aproximei não fiquei certo do que tinha visto e lembrei-me de pedir ao meu amigo aqui para virmos à tarde confirmar. Não queria fazer figuras tristes, não é, colegas?", despachei, com uma história que lhes deu apenas o suficiente para não passar por mentiroso e abrir o caminho da confiança e consequente troca de informações.

-" Claro, bate quase tudo certo com o que a testemunha disse. E o barco que de manhã lá estava? O inspector conhecia a pessoa, comunicou?..."

-"Não, não. Parecia-me apenas um pescador qualquer, que me fez adeus por confusão com alguém..."

- "OK. Bom, vamos então com o corpo para o Instituto Nacional de Medicina Legal, para ver se percebemos que tipo de corte levou à perda dos membros. E tentar identificar a causa de morte, claro. Em princípio iremos pedir-lhe que venha lá à sede fazer-nos uma visita para prestar mais declarações, como o inspector sabe..."

- "Não se preocupem, desde que me reformei nunca mais lá fui e sempre tenho uma razão para matar saudades da minha malta. Já agora... O que acham disto? Já deu para algumas conclusões?"

- "Conclusões propriamente, não... mas de certeza que teremos muito que escavar, nesta história, como pode ver", disse Pinto, enquanto me mostrava dois sacos plásticos com objectos inusitados: uma anilha de pombo e um pequeno terço em plástico verde fluorescente.

"Isto está a tornar-se cada vez mais interessante...", pensei para comigo, enquanto ia começando a acumular peças soltas de um puzzle progressivamente complexo.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Barco II

"Eles já descobriram o corpo!", pensei, em pé e praguejando impropérios enquanto o barco se aproximava do centro das nossas atenções.

- "Ó Humberto, mas tu já sabias disto?", perguntou Saul, já suspeitando que teríamos algo a ver com o aparato que formigava no cais.

- "Sim, Saul. Hoje de manhã passei aqui e...". Uma mão emergiu da água e agarrou-se ao barco, balançando-nos. Numa reacção instintiva, ambos dobrámos os joelhos para reencontrarmos o equilíbrio, enquanto víamos a cabeça e o ombro do mergulhador aparecer por entre a água suja do Tejo.

Sem tirar o bocal de respiração, fez-nos sinal para nos aproximarmos da margem, onde os curiosos e profissionais dividiam atenções entre as manobras de recuperação do cadáver de onde escorria ainda água e lodo e a nossa "convocatória".

Quando conseguimos saltar da embarcação para o cais, os dois homens de aspecto duro e judiciário que antes observavam com cara de caso a ascensão do cadáver agarraram nos braços de cada um de nós, suave mas firmemente.

- "Os senhores por favor cheguem aqui."
- "Eu vou se eu quiser! Mas quem é você!?" respondeu, abrupto e natural, Saul, enquanto com um puxão libertou o braço da pressão.
- "Oiça, não vamos fazer uma cena. Somos da Judiciária, e só vos queremos fazer umas perguntas...", respondeu o que me acompanhava, enquanto nos mostrava a identificação.
- "Ah, bom! Ó Humberto, estes..."
- "Sim, Saul, pára lá com fitas e vamos lá saber o que é que estes cavalheiros querem connosco.", cortei rapidamente. Eles ainda não precisavam se saber que eu era inspector-chefe reformado, e é sempre interessante ver como nos vão encarar até que eu o comunique...

Antes de entrarmos nas instalações do Restaurante Gaivota, aparentemente transformado num temporário posto de controlo de operações cheio de bombeiros barrigudos encostados ao balcão e apoiados nas cervejas e nas histórias de aventuras em mar e fogo, ainda pensei:

"Será que eles nos querem interrogar por podermos ser testemunhas, ou... por estarmos de barco?"

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Barco I

Enquanto a pequena embarcação verde deslizava pela placidez do Tejo, com um calmo Saul ao leme do pequeno motor de fora de bordo, eu tentava concentrar-me, por entre anzóis, redes húmidas e baldes por lavar.
"Será que já conseguiremos ver bem o cadáver? Espero que não estejam por lá muitos curiosos..."

Uma voz amadurecida por muitos anos de whiskey surpreendeu os meus pensamentos com uma frase bem-disposta:
"Ouve lá, pá, explica-me lá bem como é que me convenceste a vir para o rio com este tempo!... Eu devo é estar maluco..."

O Saul é um dos meus mais antigos amigos. Alhandrense de gema, nascido e criado nos avieiros, é daqueles tipos com os quais por vezes cansa conviver, de tão extrovertidos que são. Mas também é um dos melhores e mais seguros amigos que se pode ter, tanto para uma farra de cair para o lado como para uma cena de pancadaria ferrada (e tivémos algumas...).

"Ó velhadas, tu já foste mais rijo, não foste?"

"E ainda sou, Humberto, e ainda sou... Aliás, acho que esta carne já estava a ficar amolecida, com tanto sofá! Mas daí a virmos para o rio, para explorares uma coisa de que não falas, vai um grande passo..."

Quando ia a responder com justificações meio esfarrapadas, o barco contornou a fábrica do arroz que inicia Vila Franca e o aparato que vi quase me atropelou!

Uma ambulância, três veículos da polícia, mais de quinze pessoas (bombeiros, polícia, alguns responsáveis políticos, até câmaras fotográficas disparando flashes), e dois colegas meus (ou melhor, ex-colegas), todos observando o trabalho de dois mergulhadores de negro que removiam um corpo do lodaçal.

Ou melhor, duas pernas e um torso, sem braços nem cabeça.

É nestas horas que não consigo conter um sonoro praguejar!

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Em casa

Em casa, na sala, sentado com os braços sobre a mesa, tentei pensar sobre que informações tinha e o que podia fazer com elas.

- O sapato era do tipo mocassin. Não é um modelo de sapato que se use no Inverno, pois é arejado e não protege devidamente da chuva nem do frio... a não ser que sejamos jovens. Os adolescentes têm uma espécie de triunfo do racional sobre o físico, pois vejo miúdas de saia curta com 8º e rapazes de t-shirt em manhãs de enregelar, tudo em nome da aparência e da pertença aos seus grupos;

- O pé que ocupava o sapato, de tamanho 38 a 40, parecia magro, mas também é verdade que, estando de cabeça para baixo, o sangue deixaria inevitavelmente de ocupar os vasos sanguíneos do membro inferior...;

- Se o barqueiro me mostrou a mão, nada me garante que o pedaço de corpo que encontrei seja integralmente o restante do assassinado... Pode muito bem ser apenas a perna, ou a metade inferior do cadáver;

- Depois de se ter revelado, o barqueiro remou para a nascente do Tejo;

"Bom, então posso concluir que a vítima será uma pessoa do sexo masculino, entre os 15 e os 30 anos, eventualmente residente a Norte de Vila Franca (faz-me sentido que, se o barqueiro largou o corpo mais acima, este talvez tenha descido o rio até se fixar no lodo na baixa da maré). Deixa lá ver se..."

Levantei-me de rompante e fui até ao saco dos jornais, donde retirei o jornal "Mirante" (um semanário regional distribuído gratuitamente com o Expresso na nossa região). Folheei-o uma e outra vez, com atenção às notícias mais pequenas, mas o jornal não dá conta de nenhum desaparecimento.

"Porra!", murmurei, enquanto agarrei no telefone e teclei o número do Saul.

"Estou, Saul? Tás bom, rapaz? Olha lá, queres ir dar uma voltinha de barco?..."

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Recolhimento

Depois de ver o barco subir o rio até se tornar apenas um ponto indistinto da paisagem, olhei para a esquerda, onde estava o pé e o sapato. A subida das águas já submergia totalmente o sinistro achado.

Olhei para o relógio. "12:10. Então a maré deve baixar novamente pelas 18:00..." pensei. Esta questão colocou um novo problema: tinha de decidir, neste momento, se queria investigar sozinho este caso, ou se o iria denunciar à polícia.

A esquadra fica a uns meros 150 metros do cais de Vila Franca.
Já não me meto nestas alhadas desde que me reformei da Judiciária.
O motivo da minha reforma contrariada e prematura, ainda o sinto quente no peito...

"Mas o gajo do barco viu-me. Sabe que descobri o crime, mas não está a contar com o azar de um ex-inspector da PJ passar precisamente por este lugar nesta hora... De certeza que ele terá pensado que me aterrorizou e que fui a correr, esbracejando, pedir ajuda dos senhores de azul!..."

Ainda indeciso, olhei novamente em redor para ver se mais alguém teria assistido a toda esta cena, a adrenalina ainda circulando pelo meu corpo e fazendo tamborilar os meus dedos nervosos nas pernas.

"Ninguém. Óptimo, vou seguir com esta investigação a sós, enquanto conseguir!"

Dirigi-me para o carro. sacudindo a sujidade que já secava na minha roupa, não queria encardir os estofos ainda mais.
Sentei-me e fiz os usuais movimentos de início da marcha lentamente, ainda a processar mentalmente o que sabia sobre o que aconteceu.

O que não sabia era que alguém me observava, resguardado por uma janela onde o tímido sol de Domingo se reflectiu, numa segunda traição aos meus sentidos.