quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Barco I

Enquanto a pequena embarcação verde deslizava pela placidez do Tejo, com um calmo Saul ao leme do pequeno motor de fora de bordo, eu tentava concentrar-me, por entre anzóis, redes húmidas e baldes por lavar.
"Será que já conseguiremos ver bem o cadáver? Espero que não estejam por lá muitos curiosos..."

Uma voz amadurecida por muitos anos de whiskey surpreendeu os meus pensamentos com uma frase bem-disposta:
"Ouve lá, pá, explica-me lá bem como é que me convenceste a vir para o rio com este tempo!... Eu devo é estar maluco..."

O Saul é um dos meus mais antigos amigos. Alhandrense de gema, nascido e criado nos avieiros, é daqueles tipos com os quais por vezes cansa conviver, de tão extrovertidos que são. Mas também é um dos melhores e mais seguros amigos que se pode ter, tanto para uma farra de cair para o lado como para uma cena de pancadaria ferrada (e tivémos algumas...).

"Ó velhadas, tu já foste mais rijo, não foste?"

"E ainda sou, Humberto, e ainda sou... Aliás, acho que esta carne já estava a ficar amolecida, com tanto sofá! Mas daí a virmos para o rio, para explorares uma coisa de que não falas, vai um grande passo..."

Quando ia a responder com justificações meio esfarrapadas, o barco contornou a fábrica do arroz que inicia Vila Franca e o aparato que vi quase me atropelou!

Uma ambulância, três veículos da polícia, mais de quinze pessoas (bombeiros, polícia, alguns responsáveis políticos, até câmaras fotográficas disparando flashes), e dois colegas meus (ou melhor, ex-colegas), todos observando o trabalho de dois mergulhadores de negro que removiam um corpo do lodaçal.

Ou melhor, duas pernas e um torso, sem braços nem cabeça.

É nestas horas que não consigo conter um sonoro praguejar!

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