sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A mão

"Uma mão decepada!"

Estático, ainda com as calças sujas e o tubo na mão direita, vi o barqueiro baixar-se novamente para pousar a mão que acabara de me mostrar. Reerguendo-se novamente, levou os binóculos à face de novo, certamente para ver a reacção que me tinha causado.
Fiquei ainda uns dois segundos sem saber bem como reagir.

Deveria comunicar com ele por gestos, ou pelo menos parecer menos idiota do que estava a parecer?
Com o tubo, apontei para o lodo, onde estava o pé e o sapato quase submergidos pela subida da maré e pela chuva nebulosa daquela bizarra manhã.

O barqueiro de panamá abanou a cabeça afirmativamente.
"Ele sabe que está aqui um corpo!"
O barqueiro de panamá apontou para si mesmo, indicador afirmativamente apontado para o peito.
"Ele matou esta pessoa!"

Calmamente, o barqueiro sentou-se, mergulhou a extremidade de dois remos na água e deu meia volta na direcção da Ponte Marechal Carmona remando pela cinza água do Tejo, enquanto um arrepio gélido me estremeceu.

"E agora?"

Um barco ao longe

... um súbito reflexo de luz, proveniente do rio, fez-me perder o já precário equilíbrio e escorreguei!
Rugindo asneiras em catadupa, pus-me de pé para verificar a dimensão dos "estragos" (fiquei com as calças sujas de lama, e raspei a mão com que tentei amparar a queda), tão aborrecido que quase me esquecia do que me fez cair.
Num barco no meio do rio, a aproximadamente 200 metros de onde eu e o corpo enterrado no lodo nos encontrávamos, uma pessoa observava-nos com uns binóculos.
"A luz do sol reflectiu-se no vidro do binóculo, de certeza".

Aparentemente do sexo masculino, o barqueiro vestia um oleado verde com panamá a condizer, e via-me sem pudores.
Acenei.
Acenou-me também. Agachou-se, então, e num movimento lento, levantou uma mão e mostrou-ma durante alguns segundos.

Mas a mão não era a dele.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Decisão I

"Ok, tenho de ter certeza do que estou a ver", pensei, hesitante.
A chuva escorria-me pelas mangas do casaco, e as minhas pernas já sentiam o tecido frio e molhado das calças, mas... Tinha mesmo de tentar saber se estava à frente da minha descoberta ou se a imaginação (e a vontade de ver alguma emoção entrar novamente na minha vida) me estava pregar uma cruel partida.
Olhei em volta, à procura de uma vara suficientemente comprida que me permitisse tocar no sapato e vislumbrar um pouco mais da perna. Encostados à parede, alguns restos de recentes obras incluíam um tubo com o comprimento quase ideal.
Agarrei-o, húmido e sujo de terra, e desci cuidadosamente pela rampa de acesso dos barcos, mas tive de me esticar todo para conseguir tocar no sapato.
E, quando o fiz...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O que faço?

Quando me recompus do rasgo profundo no marasmo daquele Domingo que foi a descoberta do sapato e da respectiva perna, olhei em redor.
Não estava ninguém a passear nas imediações, não havia nenhuma alma à janela, não se ouvia qualquer som humano naquela manhã fria e chuvosa.
O que faço?
Agachei-me, para tentar inutilmente confirmar a minha visão anterior, mas os óculos estavam molhados das gotículas de chuva, e tirei-os para os limpar à minha camisola enquanto ganhava tempo para pensar sobre qual a melhor atitude a tomar... Denunciar? Calar? Comprar o almanaque Borda d'Água para saber qual a hora da próxima baixa-mar?
E a maré, entretanto, subia e submergia o objecto dos meus pensamentos...

O início

O início desta história?... Bom, tudo começa como previsível. Houve um crime.
Quando neste Domingo passeei pela margem norte do rio, vi algo que não sei bem se me pareceu logo macabro ou apenas vulgar, nesta parte do mundo.
Um sapato, visível na maré baixa, sobressaía do lodaçal.
Atacadores brancos, acinzentados pela sujidade.
Sola de borracha, sem padrões.
Uma perna saindo da sua extremidade, enterrando-se profundamente na lama.