domingo, 19 de abril de 2009

Neta II

A sala cheirava a palavras duras. Nas três horas que passaram desde a entrada meteórica de Humberto Sousa nas vidas de Vanda e Filipa muito se disse. Lançaram-se pedras, que acertaram nos orgulhos dos agressores e agredidos, mas finalmente chegou-se a um consenso.

- Vanda, esta não é a hora certa para trazer o passado para a tona. Estou quase certo que o assassinato daquele jovem no rio e do miúdo que encontraram preso à composição em Santa Apolónia têm alguma coisa a ver com o desaparecimento do Mário.
- Mas o que é que o Mário tem a ver com as merdas onde você anda metido? - respondeu Vanda expelindo com as palavras baforadas de fumo, enquanto Filipa ia navegando, aparentemente distraída, pelo Messenger.
- Não é nada do meu trabalho. Aliás, já me reformei por invalidez, depois do que aconteceu...
- NÃO ME VENHA OUTRA VEZ COM ESSA CONVERSA! O Mário agiu apenas em legítima defesa, você é que o agrediu! Ele tentou pedir-lhe desculpas, mas você nunca o quis ouvir, renegou-o!!
- O MEU FILHO, O MEU PRÓPRIO FILHO, DEU-ME UM TIRO! Porra!...

Pararam de falar quando sentiram que a adolescente parou de teclar. Tinham sido ouvidos, e haveria muito para explicar, mas ficaria para depois.

Neste momento, tinham de percorrer atentamente os últimos dias do comerciante de sementes Mário Sousa, e não os últimos anos do filho Mário Sousa.

- ... Bom, pergunto-te novamente, Vanda: Tens alguma ideia, alguma pista que me leve à localização do Mário? Alguém lhe ligou a pedir alguma coisa de especial, ou para se deslocar para algum sítio fora do normal?
- Não, nada... Houve um homem que o chateou por querer uma ração especial para pombos, mas acho que eles se conheciam...
- Espera! Disseste... "pombos"? E que eles se conheciam?
- Sim! Era um cliente lá para os lados da Estalagem do Gado Bravo, com quem o Mário falava frequentemente. Aliás, agora que fala nisso, pareceu-me que uma vez o Mário não gostou muito da conversa com o gajo. Acho que o tipo queria saber muito sobre a vida alheia...

Humberto levantou-se num pulo, levando a nora e a neta a levantarem-se também por imitação. Pediu a Vanda que procurasse pelas chaves do armazém e lhas desse. Discutiram, mas o sogro transmutou-se de autoridade judiciária e convenceu-as a ficarem.

Retirou uma arma do coldre e poisou-a calmamente nas mãos de Vanda, com lágrimas de raiva pelas surpresas que o destino esconde nas suas sombras escuras: entrega para protecção das mulheres da vida do filho a arma com que esse mesmo filho o baleou.

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