domingo, 12 de abril de 2009

Memória do passado II

- DEIXEM-ME IR PARA PORTUGAL! SEUS CABRÕES, DEIXEM-ME IR ENTERRAR A MINHA FAMÍLIA!!

No interior da tenda de campanha, um oficial miliciano recém viúvo estava prestes a incorrer em dezenas de infracções ao Código de Disciplina Militar. O coronel, o capitão e até mesmo o ordenança estavam solidários com a sua dor, mas sabiam da inflexibilidade das ordens provenientes da metrópole.

- Marques, acalme-se...
- ACALMO-ME? Eu quero lá saber se me dão uma porrada, ou mil! Eu tenho de ir para Portugal enterrar a minha mulher e o meu filho!! Vocês não percebem??
- ... Percebemos, Marques. Mas você é um alferes comando, numa zona em que estamos prestes a perder terreno para os pretos, e não nos podemos dar ao luxo de o dispensar agora. Porque é que não esperamos mais uma semana pelo seu substit...
- Eu não posso esperar, meu coronel! Eu não posso esperar nem mais um minuto...

Marques sentou-se, com a raiva a marejar-lhe os olhos e a ferir os punhos cerrados. Sabia que não o deixariam ir a tempo. Aliás, já não foi a tempo de se despedir em vida da mulher.
Lembra-se dos momentos anteriores ao embarque. Da alegria que reconhecia nos olhos da esposa sempre que ia de fim-de-semana a casa, e aparecia vestido de verde com a boina de lado.

"-Meu oficialzinho, estás tão bonito...!" dizia-lhe ela, entre o orgulho e a pirraça.

Marques nunca mais a ouviria rir. Não chegaria a ver o filho pelo qual aceitou vir para a frente de combate, na esperança de lhe ser reduzida a comissão de serviço e poder retornar. Não chegaria a abraçar a sua razão de viver.

Levantou-se. Saiu sem pedir escusa, com uma decisão que o impeliu a desgraçar a vida.

"- Santana, temos aqui uma das poucas situações em que me revolta liderar. Acho que perdemos um militar e um homem com futuro...", profetizou, pesaroso, o velho coronel de monóculo, com o seu pingalim reluzindo sobre a mesa de lona.

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