quinta-feira, 9 de abril de 2009

Memória do passado I

24 de Dezembro de 1969

A selva suava por todos os poros. Sousa, Sabino, Marques e Saul jogavam à sueca enquanto as armas repousavam numa palmeira e o calor espremia dos seus corpos toda a humidade que estes ainda continham.

Uma palanca negra observava de longe os quatro soldados, de postos diferentes mas com o mesmo ardor nos pés de tanto andar. Falavam de trivialidades, enquanto as cartas se sucediam em vazas que voavam rapidamente do centro da mesa para os seus lados. Não estavam sós, pois outros elementos do pelotão faziam as suas pequenas actividades civilizadas, mas estavam juntos.

A guerra em Angola não tinha ainda chegado ao seu pico, mas a guerrilha já dava muito trabalho aos militares portugueses, e cabia às patrulhas de reconhecimento prevenir a formação de bolsas inimigas.

Os quatro ribatejanos que, sem poderem escolher, foram incorporados em Mafra e daí seguiram para Caconda, faziam parte da companhia de Comandos que, naqueles dias, cumpriam a função de serem os olhos e ouvidos do Exército.

Patrulhavam extensas zonas profundamente esquecidas pelos mapas, tentando tornar reconhecível o que até então pertencia à natureza, em longos momentos de mato verde, capim dourado e estrelas brilhantes.

"Ó Sabino, saíste-me cá um cromo! Então com uma vaza puxada a Ouros, jogas essa dama, pá?!", troçava Saúl, enquanto observava pelo canto do olho Sousa e Marques que contavam mentalmente as cartas que já tinham saído até ao momento.

Queria baralhá-los, pois sabia que, como equipa, eles eram os melhores. Tanto Marques como Sousa sabiam bem o que fazer enquanto membros do pelotão, mas partilhavam também uma conexão mais profunda. Uma afinidade que os fazia faces diferentes de uma só moeda, num equilíbrio que os manteve vivos e sãos até àquele dia.

De repente, o velho rádio de campanha inicia uma roufenha mensagem...

Passaram-se aproximadamente quarenta segundos. O tempo que levou para uma bomba emocional explodir, envolta na curta mensagem transmitida.

Marques, que aguardava na província ultramarina pelo nascimento do seu primeiro filho em Portugal, acabara de saber que, a milhares de quilómetros, a esposa não tinha sobrevivido ao parto. Nem a criança.

Quando os camaradas se aperceberam de que algo de errado se passava, já Humberto Sousa previa que o seu parceiro de guerra, descanso e paz iria sentir-se demasiado desorientado. Levantou-se do toco de madeira que lhe serviu de assento e caminhou para o local onde Emanuel Marques tinha acabado de perder a sua vida.

O amigo ainda estava petrificado, gelado no meio do sufocante calor angolano, e as palavras que se disseram foram levadas rapidamente pelo vento que as raptou, embargadas que ficaram todas as vozes.

O que se seguiu foi surpreendente, apesar de tudo. Marques levantou-se, pegou na Walther que os oficiais recebiam antes de partir para a selva e colocou-a na boca. Premiu o gatilho mas nada aconteceu, e Sousa não deixou que ele desafiasse a sorte novamente. Tirou-lhe a arma da mão com um estalo rápido, encaixou o impacto dos murros que Marques lhe deu no peito e abraçou-o quando todas as ondas de choque culminaram num compulsivo choro.

Sousa tinha sido pai em Janeiro. Marques tinha prometido ser o padrinho de baptismo. Depois daquela missão a promessa não se cumpriu.

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