terça-feira, 28 de abril de 2009

Cardíaco II

A estrada do Sobralinho para Vila Franca parecia afunilar, encolhendo-se à passagem acelerada da massa metálica branca e vermelha que iluminava de azul tudo em volta.
A ambulância seguia rápida para as urgências, com os tripulantes preocupados.

- Senhor Humberto, quer que contactemos com algum familiar, com alguém? O senhor não tinha telemóvel consigo quando o encontrámos.

O velho inspector, agora aparentemente frágil na prostração em que se encontrava, murmurou que não tinha ninguém a quem pedir ajuda. Tal não era verdade, e Sousa sabia-o. O amigo Saul não o deixaria ficar mal... Mas era melhor não envolver mais ninguém neste lodaçal em que se tornou a sua vida.

Reflectindo sobre as últimas etapas do mistério, algumas coisas tornaram-se muito provavelmente certas:

- O filho, Mário, estava em perigo

- Marques, o ex-camarada de armas que desertou naquela savana angolana, tinha-se tornado uma pessoa muito sombria, eventualmente por questões de stress pós-traumático


- A ligação entre os ex-amigos era tão forte que Marques iria prolongar a vingança pela frustração de não ter podido viver uma vida em família


- Ele próprio estava em piores condições físicas do que imaginaria


- A salvação do filho estava, quase certamente, no endereço que guardava na mão esquerda



Um impacto nas traseiras da ambulância, chapa contra chapa, acordou Humberto Sousa dos seus pensamentos. Os travões fizeram os pneus rugir no alcatrão, enquanto nova pancada estremeceu o interior da ambulância e fez tilintar os equipamentos.

- Emanuel, agarra-te bem que está um doido atrás de nós, pá!- gritou o condutor, enquanto tentava abrandar a marcha da viatura e procurava berma para encostar.
- Ó Ventura, mas consegues ver se é de propósito?
- Não... deixa-me parar aqui à frente da Cimianto para vermos os estragos. O paciente está bem?

O bombeiro Emanuel olhou para mim. Acenei que sim.

- OK, senhor Humberto, vamos parar só um segundo para tirarmos os dados do outro condutor. Não demoramos nada.

Quando Emanuel e Ventura abriram as respectivas portas, saltaram da ambulância para encontrarem uma arma apontada. "Porra...", sussurraram em coro espontâneo de incredulidade.

Quem lhes apontava a arma ordenou que ajudassem o paciente a levantar. De seguida, ordenou que o ajudassem a chegar ao carro de chapa batida que estava parado com o motor a trabalhar e um dos médios a funcionar. Finalmente, uma última ordem para se afastarem da ambulância esmurrada.

Retirada a chave que impediria os bombeiros de perseguirem o futuro veículo em fuga, a arma parou de ameaçar e a mão que a segurava entrou com o restante corpo para o lugar do condutor e engatou a primeira velocidade.

Já aceleravam há uns dois minutos, em direcção à ponte Marechal Carmona, quando falei:

- Vanda Carla, tens a certeza disto?
- Tenho. Vamos à morada que acabaste de me dar, salvamos o meu marido...e só confio em ti para fazeres o que for necessário para que isso aconteça. - respondeu-lhe a nora.

"Uma técnica de análises clínicas de meia-idade, um velho cardíaco e um revólver... Tem de ser suficiente."

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