segunda-feira, 18 de maio de 2009

Luar no alpendre I

A noite estava luminosa e sentia-se quente. O som do vento que se desviava das folhas de trigo era suave e as rodas dos carros rolando ao longe pela estrada davam o sinal de vida numa paisagem que parecia tocada pela imobilidade.
Marques olhava pela janela suja, enquanto a cerveja aplacava a sua sede, o lugar em que estava.

A cabana que ocupou quando a Companhia das Lezírias deixou de cultivar os terrenos próximos à estrada para o Porto Alto era uma das muitas arrecadções e barracões que serviram noutros tempos para o apoio ao trabalho da terra.

Também Marques um dia pensou que seria agricultor ou avieiro. Retirando do rio o sustento, numa vida com horizontes curtos, era o destino que pensava estar traçado. Até que, do Portugal soterrado pelo peso de um colonialismo fora de época, uma guerra o chamou.

Saíu, conheceu, formou-se e deformou-se na vida castrense, até ir para um continente onde se falava a sua língua mas no qual tudo o resto parecia retirado de um colorido livro de geografia. E aí descobriu que o destino, qual serpente, traça um sulco curvo nas vidas...

O filho do Sousa tinha desmaiado com a dor. Sangrava pouco devido aos garrotes, mas já tinha sentido a dilaceração da faca do mato, numa dor que a dada altura se terá tornado difusa quanto à sua origem.

Marques voltou-se para a cadeira de madeira escura ocupada com o desmaiado. Fazendo cunha com o pé, balançou-a e arrastou o filho do seu ex-companheiro de combate para o alpendre, virando-o para o campo semi-selvagem que se espalhava por toda a frente da casa. Agachou-se, retirou a mordaça, levantou-se novamente (devagar, com as costas ressentidas dos últimos esforços), e sentou-se.

"- Então, o que achas desta vista, rapaz?", perguntou calmamente Marques. Mário não se mexeu.

"- Sabes, Mário, não é que eu não tenha tentado, sabes? Seguir com a minha vidinha, tentar esquecer que os cabrões dos militares andavam atráz de mim... até emigrei para não me meter em problemas. Mas tenho de admitir que a minha vontade de me vingar de todos os que me desgraçaram a vida foi demasiado grande. Não conseguir dormir de noite, não conseguir olhar para uma criança sem imaginar a cara que o meu filho teria... E confesso, tem sido bom voltar à caçada."

Mário levantou a cabeça, e cuspiu um pouco do sangue que lhe sabia mal na boca. Olhou de soslaio para o seu torturador e disse:

- Nunca pensei que um dia desejaria ver o meu pai. Nunca pensei que compreenderia a sua maneira de ser. Nunca pensei sequer que teria em mim a vontade de matar alguém...
Mas vou sentir-me muito feliz quando ele chegar - sim, porque ele vai chegar - e te mandar desta para melhor, cabrão de merda...

Marques não respondeu, mas pensou em Deus. E em cortes profundos, sangue e tendões.

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