terça-feira, 1 de setembro de 2009

Capuchinho Vermelho II

À contra-luz, a figura masculina que abriu a porta não se parecia com o jovem oficial miliciano que Humberto viu desertar em África. Mais encorpado, com menos cabelo, os ombros ligeiramente descaídos... era um cinquentão como ele, o criminoso do rio.

- Boa noite. - disse o homem.
- ... Olá. Desculpe incomodar, mas estava ali a pescar no rio e ouvi um grito vindo daqui deste lado. Precisa de ajuda, alguém se aleijou? - respondeu a rapariga com simpatia.
- Não sabe que é proibido pescar de noite no Tejo? - disse o homem com tom cordial.
- Não, não sabia... eu não sou desta zona, só vim cá experimentar...
- Sozinha?
-... Não, não. Vim com o meu pai, ele ficou a arranjar o material da pesca ali na margem do rio.
- Com o seu pai? De certeza?... - o homem parecia duvidar da veracidade das palavras da sua interlocutora.
- Sim, sim. Bom, então se calhar vou andando para casa. Boa noite e desculpe incomodar.
- "Vão" andando, certo?
- Desculpe? - a rapariga voltou-se novamente para o homem.
- A menina disse "vou" andando, e não "vamos" andando... Veja lá se não se esquece do seu pai... Há tanto abandono entre os idosos... - retorquiu calmamente o homem que se amparava languidamente no alpendre.
- Ah, claro! É maneira de falar! - e a rapariga retomou o caminho que fez desde a margem.

Refeito de toda a surpresa que constituiu o envolvimento da inocente rapariga na confusão, a que se juntou a possibilidade de rever com calma o seu adversário, Humberto deu por si a considerar a melhor forma de abordar o problema.

Tinha poucas opções e bastantes problemas... mas tinha ganho uma forma de ludibriar Marques, que entretanto entrou para a casa e fechou a porta atrás de si. Acompanhou à distância a rapariga que progressivamente acelerou a passada, até vê-la chegar perto de um pequeno barco.

"O barco onde Marques despejou o corpo do rapaz no rio!" - pensou Humberto com alguma alegria por ter encontrado uma prova circunstancial importante para o futuro.

A rapariga falava consigo mesma, decididamente aborrecida, e com gestos bruscos arrumava na mala os utensílios.

Margarida estava muito frustrada consigo própria. "Como é que eu ainda não aprendi a meter-me na minha vida, já com trinta anos??", murmurava... Até se calar, estarrecida.

Um homem de bata branca e arma na mão surgiu de entre o campo de trigo, sem qualquer som que a preparasse para tão inusitada presença.

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