Quando Margarida decidia que tinha mesmo de fazer alguma coisa, essa decisão nunca explodia. Fermentava devagarinho, como bolo no forno, até um dia os amigos ouvirem dizê-la: "Já venho, tenho uma coisa para fazer".
Quem a conhece já está habituado à distância entre a menção a um projecto ou decisão e a concretização efectiva dessa intenção, e não confunde maturação com adiamento. Porque não é que a Margarida adie.
Simplesmente aguarda pelo seu momento, como esta noite.
Margarida pensou, numa tarde perdida, que seria interessante pescar sável. Nunca o tinha feito, sabia que nas redondezas de Lisboa havia essa tradição piscatória, e pareceu-lhe entusiasmante passar uma noite a armadilhar, com as velhas galochas enterradas até ao joelho em lama e o oleado que a mãe lhe deu pelos 20 anos a acumular a condensação da humidade.
Àparte a partilha da ideia com os amigos que, desinteressados de aventuras, sorviam imperiais, não se mexeu... até se levantar hoje do sofá, agarrar no equipamento e conduzir à luz do crepúsculo até Vila Franca de Xira, passando para a estrada do Porto Alto. Estacionou na berma, equipou-se, respirou fundo e caminhou para a margem Norte do rio, acima da Ponte Marechal Carmona.
Quando terminou de lançar as armadilhas no Tejo, e reflectindo sobre a profundidade do caudal do rio, pensou: "De barco é que isto se fazia mesmo bem. Será que há para aí algum coco desocupado que eu pudesse usar?"
Riu-se, recordando os tempos de infância em São Martinho do Porto, quando pedia "emprestado" os barcos dos pescadores e ia para o largo da costa apanhar o robalo mais fugidio. E não pôde deixar de se lembrar das palmadas que levou da mãe à luz da delação dos lesados... Desde essa dolorosa punição (que meteu inclusivamente a entrega do peixinho pescado aos prejudicados) pescou sempre em rocha... mas esta noite iria variar.
Levantou-se, esticando a cabeça, e tentou vislumbrar um relance ou um brilho de algum barquito. E viu mesmo um! Estava a escassos metros acima, entre os arbustos que venceram os antigos campos de trigo. Caminhou até lá calmamente, e chegando ao pequeno barco (sem motor e com dois remos cobertos com um toldo escuro) pensou: "É isto mesmo!"
Margarida pousou a bagagem no chão e ouviu um grito aterrador que o vento trouxe do campo selvagem. Esta não seria uma simples noite de pesca, e uma bota inusitadamente enterrada na lama parecia indicar a Margarida a direcção da sua arrepiante curiosidade.
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
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