-"Humberto, Humberto, 'tás em casa?"
A mão fechada batia à porta com estrondo, acordando Humberto do seu sono de meio da tarde. Os joelhos já enferrujados ajudaram o corpo estremunhado a levantar do sofá, enquanto as folhas dos jornais esvoaçam para o chão, espalhando-se pelos ladrilhos.
Abrindo a porta, ainda lutando para se libertar de Morfeu, Humberto não consegue esconder um tom algo irritado pela forma intempestiva como Saúl se fez anunciar:
-"O que é que tu queres, porra? Chegas aqui aos grit..."
-"Tu sabes quem é o pai do rapaz que tiraram do rio todo esfacelado, pá? O Sabino!"
-"Sabino? Qual Sabino?"
-"O Sabino, pá, que esteve connosco em África na guerra, não te lembras? Acabei de receber uma chamada da mulher dele a informar que o funeral é amanhã...", e Saúl entrou e sentou-se na cadeira de madeira escura.
Humberto ficou em pé, à porta da sala, vendo o amigo sentado e a paisagem de folhas de jornal que coloriam o chão. Os neurónios perdiam o turvo demasiado lentamente para processar a informação recebida. "Dava tudo para beber um whisky...", pensa.
Saúl continua à espera.
-"Então, Humberto, isto diz-te alguma coisa sobre o crime, ou ainda não concluiste nada?"
-"Não, nem sequer me tinha apercebido dele lá. Já não vejo o Sabino há tantos anos que de certeza nem o reconheceria se nos cruzássemos na rua, quanto mais em fotografias de jornais..."
-"Pois, tu nunca foste muito de comparecer nos encontros da nossa malta... Bom, o funeral do miúdo é amanha, queres vir?", aquiesce em voz baixa Saúl, sem querer trazer ao de cima velhas memórias dos tempos ultramarinos.
-"Não, Saúl... Diz-me só uma coisa: o Sabino anda metido em alguma coisa de manhoso? Tens alguma ideia?"
-"Acho que não, ele tem uma lojinha de electrodomésticos que montou após a guerra, lá para os lados do Carregado", responde o pescador, convicto.
Afinal as suspeitas de o corpo poder ter sido largado mais a Norte confirmam-se. Provavelmente o assassino é daquela zona.
-"É verdade, pá, e aquilo do miúdo? Duas desgraças em Vila Franca na mesma altura, é galo...", perguntou Saúl. O amigo não respondeu, mas fechou o punho, a impotência latejando nas veias.
-"O Almeidinha também está derreado...", murmura Saúl, levantando-se como quem vai fazer mais alguma coisa (vício de pescador, sempre à procura de aproveitar mais um pouco do tempo).
-"Espera aí! O Almeidinha é o pai da criança que encontraram presa ao comboio??"
-"É, porquê? Em Vila Franca toda a gente fala nisso! Não sabias? Uma triste coincidência, dois ex-camaradas nossos perderem os filhos assim, de forma tão estúpida..."
As peças do puzzle começaram a formar uma imagem na cabeça de Humberto Sousa.
sábado, 14 de março de 2009
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