À contra-luz, a figura masculina que abriu a porta não se parecia com o jovem oficial miliciano que Humberto viu desertar em África. Mais encorpado, com menos cabelo, os ombros ligeiramente descaídos... era um cinquentão como ele, o criminoso do rio.
- Boa noite. - disse o homem.
- ... Olá. Desculpe incomodar, mas estava ali a pescar no rio e ouvi um grito vindo daqui deste lado. Precisa de ajuda, alguém se aleijou? - respondeu a rapariga com simpatia.
- Não sabe que é proibido pescar de noite no Tejo? - disse o homem com tom cordial.
- Não, não sabia... eu não sou desta zona, só vim cá experimentar...
- Sozinha?
-... Não, não. Vim com o meu pai, ele ficou a arranjar o material da pesca ali na margem do rio.
- Com o seu pai? De certeza?... - o homem parecia duvidar da veracidade das palavras da sua interlocutora.
- Sim, sim. Bom, então se calhar vou andando para casa. Boa noite e desculpe incomodar.
- "Vão" andando, certo?
- Desculpe? - a rapariga voltou-se novamente para o homem.
- A menina disse "vou" andando, e não "vamos" andando... Veja lá se não se esquece do seu pai... Há tanto abandono entre os idosos... - retorquiu calmamente o homem que se amparava languidamente no alpendre.
- Ah, claro! É maneira de falar! - e a rapariga retomou o caminho que fez desde a margem.
Refeito de toda a surpresa que constituiu o envolvimento da inocente rapariga na confusão, a que se juntou a possibilidade de rever com calma o seu adversário, Humberto deu por si a considerar a melhor forma de abordar o problema.
Tinha poucas opções e bastantes problemas... mas tinha ganho uma forma de ludibriar Marques, que entretanto entrou para a casa e fechou a porta atrás de si. Acompanhou à distância a rapariga que progressivamente acelerou a passada, até vê-la chegar perto de um pequeno barco.
"O barco onde Marques despejou o corpo do rapaz no rio!" - pensou Humberto com alguma alegria por ter encontrado uma prova circunstancial importante para o futuro.
A rapariga falava consigo mesma, decididamente aborrecida, e com gestos bruscos arrumava na mala os utensílios.
Margarida estava muito frustrada consigo própria. "Como é que eu ainda não aprendi a meter-me na minha vida, já com trinta anos??", murmurava... Até se calar, estarrecida.
Um homem de bata branca e arma na mão surgiu de entre o campo de trigo, sem qualquer som que a preparasse para tão inusitada presença.
terça-feira, 1 de setembro de 2009
Capuchinho Vermelho I
Humberto já não se lembrava de como era difícil caminhar descalço na terra. Os pés sofriam por pisar nas espigas esmagadas, como se o trigo quisesse num último estertor partilhar a sua frustração pelo abandono a que foi votado pelo Homem. E qualquer representante da raça serviria, mesmo um tipo armado caminhando ofegante envolto apenas por uma bata branca...
Os olhos do ex-inspector já se tinham habituado à noite e a casa abarracada já se via a algumas dezenas de metros. Era uma construção em declínio, com um alpendre e uma janela à esquerda da porta, iluminada no interior. Parecia-lhe difícil escancarar a porta e entrar a matar sem ferir Mário, por isso alguma solução teria de se arranjar para atrair o cabrão do Marques para o exterior.
"Porra, o Saul dava jeito...!", pensou Humberto enquanto massajava o peito quase inconscientemente. Sentia dor nas costas e nas articulações, mas só pensava em tirar o filho dali para fora e encher de chumbo o seu antigo camarada.
De repente, um vulto aparece no campo de visão. Uma silhueta feminina, proveniente do rio, caminha até à casa. "É mais baixa que a Vanda... quem será? Uma cúmplice?", pensou.
A voz feminina que passados alguns segundos ouviu rapidamente o esclareceu: "- Ó da casa?", chamou a rapariga, com voz jovial mas ligeiramente assustada. Porque ninguém respondeu do interior, a rapariga que parecia envergar botas e casaco oleado repetiu a pergunta, com tom de voz um pouco mais elevado.
"Pronto!, não me faltava mais nada... Uma capuchinho que se veio meter mesmo na boca do lobo!", praguejou Humberto.
E a porta da cabana abriu-se lentamente...
Os olhos do ex-inspector já se tinham habituado à noite e a casa abarracada já se via a algumas dezenas de metros. Era uma construção em declínio, com um alpendre e uma janela à esquerda da porta, iluminada no interior. Parecia-lhe difícil escancarar a porta e entrar a matar sem ferir Mário, por isso alguma solução teria de se arranjar para atrair o cabrão do Marques para o exterior.
"Porra, o Saul dava jeito...!", pensou Humberto enquanto massajava o peito quase inconscientemente. Sentia dor nas costas e nas articulações, mas só pensava em tirar o filho dali para fora e encher de chumbo o seu antigo camarada.
De repente, um vulto aparece no campo de visão. Uma silhueta feminina, proveniente do rio, caminha até à casa. "É mais baixa que a Vanda... quem será? Uma cúmplice?", pensou.
A voz feminina que passados alguns segundos ouviu rapidamente o esclareceu: "- Ó da casa?", chamou a rapariga, com voz jovial mas ligeiramente assustada. Porque ninguém respondeu do interior, a rapariga que parecia envergar botas e casaco oleado repetiu a pergunta, com tom de voz um pouco mais elevado.
"Pronto!, não me faltava mais nada... Uma capuchinho que se veio meter mesmo na boca do lobo!", praguejou Humberto.
E a porta da cabana abriu-se lentamente...
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